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Um sonho por cumprir

Sérgio Silva
Opinião \ sexta-feira, abril 05, 2024
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O que faz falta é avisar a malta que falta cumprir-se Abril e que isso se faz todos os dias.

No passado, alguém teve a ousadia de sonhar. Sonhou com um país liberto da censura e do controlo de toda atividade política e associativa, onde as pessoas pudessem expressar livremente os seus sentimentos e as suas opiniões. Sonhou com um país que não fosse “orgulhosamente só”, mas aberto ao exterior. Sonhou com um país onde cada um pudesse escolher quem quer que o represente e ser escolhido para representar os seus pares. Sonhou com um país onde todo o cidadão, independentemente da sua origem, tivesse como direitos consagrados a educação, a saúde, a habitação. Sonhou com a liberdade de um país que podia ser muito mais do que aquilo que era. E esse foi um dos mais belos sonhos da nossa história.

Esse sonho completa, dentro de poucos dias, cinquenta anos. Mas o “dia inicial inteiro e limpo”, que Sophia esperava, não foi só um acontecimento de há cinquenta anos. É o dia que esperamos hoje e pelo qual devemos ousar lutar. Meio-século depois, urge lembrar as pessoas que nada está garantido. Meio-século depois, importa estar-se vigilante, atento e combativo à proliferação dos discursos de quem quer, assumida ou disfarçadamente, pôr em causa aquilo pelo qual tantos lutaram antes de nós. Os cinquenta anos do 25 de abril desafiam-nos a perceber que a democracia vive um dos momentos mais perigosos da sua página e que cabe a cada um de nós fazer a sua parte por continuar a escrever a história bonita de um cravo que, não sendo regado, pode murchar.

Há dias, vi no Público o seguinte título: “É entre os jovens que o legado do 25 de abril é mais valorizado”[1]. Confesso que quando o li, esbocei um sorriso de genuína esperança no meu país. Essa frase não deixa de ser paradoxal num momento em que tantos jovens se deixam encantar pelos discursos fáceis daqueles que põem em causa o que até agora foi conquistado em conjunto. Enfim, o certo é que esbocei um sorriso de esperança. Porque há, de facto, esperança nos herdeiros de Abril, que, não tendo vivido a revolução, sabem que a devem defender até ao fim dos seus dias; que sabem que a Liberdade é um bem precioso inegociável; e que não deixam de honrar a memória de quem lutou para que isto fosse possível.

Nos cinquenta anos do 25 de abril, pergunto-me: “o que faz falta?”. Quando esta pergunta me vem à cabeça, lembro-me sempre do nosso Zeca (e que saudades nos deixa…), que parafraseio. O que faz falta é avisar a malta de que nada é garantido. O que faz falta é animar a malta e voltar a dar a confiança na democracia e nas instituições às pessoas que já não acreditam. O que faz falta é acordar a malta que anda adormecida, achando que isto não tem nada que ver com eles e que anda iludida pelos discursos de quem quer que a malta ande a dormir. O que faz falta é empurrar a malta para este combate bonito e vivo, dizendo-lhes que esta é uma luta de todos e da qual todos somos indispensáveis. O que faz falta é agitar a malta, para que continue, em ritmo diário, a lutar por um país melhor, por melhores condições de trabalho, por uma Escola Pública mais fortalecida e por um Serviço Nacional de Saúde que responda cada vez melhor às necessidades das pessoas. O que faz falta é libertar a malta das amarras dos poderes estabelecidos e dos problemas do dia-a-dia. O que faz falta é avisar a malta que falta cumprir-se Abril e que isso se faz todos os dias.

“Há quem queira deitar abaixo o que eu levantei”, cantava Zeca Afonso. Seremos sempre mais os que defendem incansavelmente a liberdade do que os que a querem destruir. Mas venham para a luta, todos! Esta luta é hoje, amanhã, sempre. Enquanto assim for, ninguém cerrará “as portas que Abril abriu”[2]. Mas para já continuemos a gritar, sem medo, que “25 de abril, Sempre e Fascismo, nunca mais”. Viva a liberdade!

 

(Nota ao leitor: arrepio-me, sempre, ao falar do 25 de abril. E escrevi este texto ao som de “Traz outro amigo também”, na interpretação de Mário Laginha e Bernardo Sassetti de um dos meus álbuns favoritos, “Abril a quatro mãos” e cuja audição aconselho vivamente.)

 

[1] https://www.publico.pt/2024/03/25/p3/noticia/jovens-legado-25-abril-valorizado-2084668

[2] Ary dos Santos, em “As portas que Abril abriu”.