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Linhas vermelhas

Sérgio Silva
Opinião \ sexta-feira, fevereiro 09, 2024
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Atrevo-me a ir mais longe e a dizer que não só os grandes comem os pequenos, como os que se acham e querem ser grandes comem tudo o que lhes aparece à frente, apenas por fome de mais para si.

Somos a história dos nossos encontros. E a história das nossas comunidades, da sociedade em que vivemos e da democracia da qual nos orgulhamos escreve-se a partir da história de cada um, das opções que cada pessoa escolhe tomar. As nossas comunidades serão mais resilientes, a sociedade mais justa e a democracia mais consolidada na medida em que cada um contribuir para as boas causas, no pleno respeito pelo outro.

O último texto que escrevi terminava com um desafio a estarmos atentos àquilo que vai acontecendo, porque, como citava, as coisas acontecem, embora poucos olhem para elas. Poucos olham, e menos veem verdadeiramente, porque talvez não se queira ver. O pior cego é aquele que não quer ver, diz-nos (e muito bem) a sabedoria popular. Com isto quero dizer que muitas coisas que acontecem deviam fazer-nos refletir sobre as nossas próprias histórias, opções e atitudes. De nada vale denunciarmos o que está mal se não formos capazes de fazer o correto, quando para isso temos oportunidade.

Cada um deve ser a diferença que quer ver no mundo, na plena coerência entre aquilo que defende e aquilo que faz. Isto obriga a que se definam linhas vermelhas, limites que distingam claramente o que faz ou não sentido, o que está certo e o que está errado – claro está que cada um definirá as suas, dependendo da forma como se relaciona com os outros e como vê o mundo que o rodeia. Se, no último texto, discorri sobre uma das minhas linhas vermelhas (a que distinguia os bons e os maus contributos), hoje permito-me refletir sobre a linha vermelha do sucesso.

Tenho para mim que o sucesso individual só é plenamente conseguido num contexto de sucesso coletivo, mas muitas vezes a leitura das situações não é feita desta forma. Não se olham a meios para se atingir fins, há uma deliberada incapacidade de se ver no lugar do outro e não há uma atitude de empatia que permita avaliar se se está ou não a prejudicar o bem-comum. Vale tudo para se atingirem os objetivos. Tinha razão o Padre António Vieira quando disse que “a maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos”[1]. Atrevo-me a ir mais longe e a dizer que não só os grandes comem os pequenos, como os que se acham e querem ser grandes comem tudo o que lhes aparece à frente, apenas por fome de mais para si, e não de melhor para os outros. Que bom seria se o Sermão ecoasse nos ouvidos de um mundo preso em si mesmo, nas amarras do individualismo e das supostas boas intenções.

A História está nas nossas mãos. Olhemos verdadeiramente para o que acontece, leiamos corretamente a realidade e ajamos em conformidade com aquilo em que acreditamos, sob pena de muitas coisas que condenamos continuarem a acontecer, suportadas pelo nosso cunho pessoal, que não foi capaz de ser fiel ao compromisso que cada um deveria ter com a seriedade e o respeito por si e pelos outros. Nas palavras de Saramago, “o mal está aí à espera, e depois não digam que não sabiam, que não tinham dado conta”.

[1] do Sermão de Santo António, capítulo IV