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Rockeiros de Plástico

Pedro Conde
Opinião \ segunda-feira, dezembro 08, 2025
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A geração analógica tinha muitas falhas, mas acima de tudo tinha verdade, mesmo quando imperfeita.

Pois é meus amigos, vivemos nuns tempos estranhos, em que cada vez me enquadro menos neste novo estilo de sociedade, e relativamente à música, cada vez encontro menos discos em que fico realmente feliz de ouvir.

Sempre fui alguém do rock, do grunge, e nos anos 90 (década que comecei a ouvir música), ser do rock era uma escolha de vida — uma espécie de manifesto de autenticidade. Vivíamos numa era analógica, em que as bandas gravavam em fita, os discos tinham de ser comprados, e a internet era uma espécie de miragem. Os acordes sujos, crus, as vozes eram roucas, os palcos eram improvisados, com pouca luz, e poucas distrações para o que era mais importante, a música e a performance dos músicos. Contudo, ninguém queria ser perfeito, queria-se acima de tudo ser verdadeiro, queria-se mostrar o que ia na alma. O rock era mais do que música, era resistência, liberdade, desordem e caos criativo. Era o grito de uma geração que não precisava de “likes” para existir, apenas de uma guitarra distorcida, baixo bateria e atitude.

Hoje, o mundo mudou. Saímos da era do ser para a era do parecer. Do viver intensamente para o mostrar cuidadosamente. A revolução digital transformou-nos em avatares de nós próprios, e nós, os rockeiros não escapamos. As guitarras deram lugar aos smartphones, os palcos, aos megapixeis das camaras e écrans dos nossos telemóveis. O rock, que nascia do suor e da imperfeição, tornou-se um produto higienizado e filtrado, embalado para consumo rápido nas redes sociais.

Os velhos rockeiros dos anos 90, antes sujos e rebeldes, agora são forçados a medir a rebeldia pelo número de seguidores. Já não partem guitarras, partilham “stories”. Ainda usam preto, mas é preto minimalista de uma marca sustentável “green” e “inclusiva” que os vai patrocinar. Continuam a fazer tatuagens, mas só se ficarem bem com o look geral e nas selfies, e claro, se não ferir a suscetibilidade de ninguém. A atitude que antes era visceral, tornou-se acima de tudo estética controlada. E meu o grunge transformou-se hoje em “influencers mood”.

E se estes são os rockeiros de ontem, imaginem os de hoje, os nascidos depois da era de ouro dos anos 90. Cresceram sem tocar num vinil, sem saber o que é rebobinar uma K7 com uma caneta Bic (aliás nem sabem o que é uma K7). Conhecem o Kurt Cobain apenas pelas frases motivacionais no Pinterest. Para eles, o rock é uma espécie de filtro do Instagram, um estilo de roupa da Levi´s, uma playlist do Spotify chamada “Rock Vibes”.

Vivemos tempos em que outros estilos musicais (alguns muito duvidosos devo dizer, com letras vazias a falar de cavalinhos e de onde as pessoas se devem ou não sentar) tomaram o trono do mainstream, e o rock, que antes reinava com arrogância e guitarras distorcidas, foi empurrado para o campo da nostalgia e do vintage. A rebeldia deu lugar à conveniência. O barulho foi trocado por algoritmos do que mais vai vender, as letras de protesto por slogans de marketing. A sociedade que antigamente exaltava o inconformismo hoje recompensa o enquadramento, a aparência perfeita, a pose controlada, o ego medido em gostos.

O que se perdeu afinal, não foi só a sonoridade rock, mas sim o sentido deste estilo de música. O rock falava com a alma distorcida, falava da dor, de revolta, de inconformismo, de viver sem nunca ter medo de ser. Hoje em dia as pessoas vivem com medo de não serem vistas, as coisas só acontecem se forem partilhadas no instagram. A geração analógica tinha muitas falhas, mas acima de tudo tinha verdade, mesmo quando imperfeita. A esta nova geração digital sobraram-lhe os  filtros da perfeição que esta sociedade exige, para distorcerem a realidade e parecerem sempre melhores. Melhores não na essência, porque isso não interessa para nada. Não é praticar o bem, é ser visto a praticar…

Ainda assim, sei que o espírito do rock não morreu — apenas se escondeu atrás das luzes destas luzes brilhantes onde não se consegue enquadrar. Continua vivo em lume brando, uma espécie de braseiro adormecido. Continua a pulsar, discreto, em cada jovem que rejeita o óbvio, em cada banda que ensaia numa garagem, em cada um que prefere criar do que imitar. O rock está sempre à espera de uma faísca, de alguém que desligue a internet, ligue o amplificador e grite, sem medo de parecer ridículo, aquilo que todos sentem mas já ninguém diz. Esta é a faísca que irá por este braseiro novamente arder… O contraciclo que espero voltar a ver, e deste underground surgirão certamente novas bandas enormes e novos grandes discos.

E talvez, se pensarmos bem nisto, no fim das contas, esta sociedade decadente, obcecada por aparência e imagem seja exatamente o terreno fértil necessário para o renascimento do rock. Quanto mais se plastifica e ultraprocessa todos os aspectos da nossa vida, mais impacto cria um rasgo de fúria de uma boa guitarra com distorção.

Entretanto, e por falar com guitarras com distorção, fica a sugestão de irem ouvir o novo single dos nossos conterrâneos Noise at Valve que saiu esta semana. “You could be the one”, é o aguardado primeiro tema da banda e o prolongamento para disco da música deste trio que nos tem habituado a grandes concertos ao vivo, e uma nova etapa na sua vida. Está disponível em todas as plataformas digitais da banda.

 

ndr: texto publicado originalmente na edição de novembro do jornal Reflexo