O vazio das opiniões
Falam de pão
mas comem pão
falam de suor
mas tomam banho
falam de amor
mas traem amigos
falam de injustiça
falam de justiça
mas roubam
falam de tudo
mas falam de tudo
falam
mas não desistem
não pensam
nem se recusam
ninguém se demite
daquilo que é
entretanto as coisas acontecem
embora poucos olhem para elas
Está na moda “falar”. Toda a gente fala, com propriedade, de e sobre tudo, mas poucos são os que, na verdade, alguma coisa dizem. Todos são entendidos sobre tudo o que os rodeia, opinam sobre aquilo que veem e sabem, mas, no fundo, acabam a falar sobre o que não veem e o que não sabem. Todos identificam e denunciam as coisas mal feitas e os problemas, mas têm uma capacidade maior de os inventar quando não existem. Daí que quem, como eu, ler estes versos de Fernando Lemos como um espelho do paradoxo social dos nossos dias, possa, de facto, não estar enganado. E o paradoxo é este: tudo sabem, mas não sabem nada; tudo falam, mas nada dizem.
Este status quo resulta das tendências individualistas e egoístas que são amarras cada vez maiores da nossa sociedade. Cada um é que sabe, tem a sua opinião, muitas vezes não fundamentada e não importa saber que grau de pertinência tem a sua atitude no contexto do assunto em questão. Talvez seja caso para dizer que felizes são os que não falam por falar e que, tendo plena consciência do que vão dizer, quando falam, tudo dizem. Aqui funciona a lógica da passadeira – quando era mais novo, ensinaram-me a olhar para a esquerda, para a direita, voltar a olhar para esquerda e, aí, avaliando as condições de segurança existentes, atravessar ou não. Devíamos aplicar mais vezes este raciocínio no nosso dia-a-dia, concretamente no que diz respeito a esta moda de “falar” – começamos por pensar no que queremos dizer (olhar para a esquerda), pensando se o vamos fazer na linha da verdade e corretamente (olhar para a direita) e avaliando, em última instância, a pertinência que justifica ou não o que vamos dizer (voltar a olhar para esquerda); se aplicássemos todos esta lógica de pensamento, estaríamos a prestar um melhor serviço público aos outros, a contribuir para uma sociedade mais informada e a preservar a nossa dignidade social dos caminhos da mentira e da mesquinhez. É no pluralismo das ideias fundamentadas que se resolvem os problemas e se constrói um mundo melhor.
A génese dos grandes problemas e desentendimentos está nas formas individualistas e desinformadas de pensar. Desinformação gera desinformação, individualismo gera individualismo e, no meio disto tudo, damos por nós a contribuir para esta cultura do espetáculo, em que todos querem estar no palco, mas ninguém tem nada de artista. Contrariar tudo isto assume-se particularmente importante no contexto do ano que estamos a viver, de grandes decisões e acontecimentos à escala local, regional, nacional e internacional. Assim, urge pensar mais além, despindo-nos da nossa forma de ser por vezes umbiguista e contribuindo para uma causa maior do que nós – o bem-comum. Estas são lições de elevada importância para este ano, porque 2024 será o que cada um quiser, no grau de seriedade com que cada um encarar a sua forma de ver o mundo.
Não é quem fala mais alto que tem razão. Não é quem fala muito que tem muita coisa para dizer. E não é quem fala sobre tudo que terá verdadeiro conhecimento sobre aquilo de que fala. É preciso ter cuidado com o que se ouve e com o que se diz. Porque, envolvidos em tanta agitação, nem nos apercebemos que entretanto as coisas acontecem, embora poucos olhem para elas.