É urgente sermos Humanos.
O calendário das últimas semanas reservou-nos duas datas com muito significado que, infelizmente, ainda têm na nossa realidade, uma atualidade que era desejável que não existisse. No passado dia 15, contaram-se três anos desde a tomada de Cabul, capital do Afeganistão, pelo regime talibã; e no dia 19, comemorou-se o Dia Mundial Humanitário. Devo confessar-lhe, caro leitor, que, em primeira instância, não estabeleci qualquer tipo de relação entre estas datas. Mas ontem li uma notícia que me fez perceber, embora eu tivesse essa noção, que o significado do Dia Mundial Humanitário é cada vez mais atual e particularmente real no contexto de um país que está em plena crise humanitária.
«Talibãs destroem mais de 21 mil instrumentos musicais para “prevenir o vício”»*. Era esta a notícia. Fiquei angustiado. O caos humano continua a destroçar um país e se é verdade que as guerras na Ucrânia e no Médio Oriente continuam a destruir a vida de tantas pessoas e a desmoronar a paz dos territórios, também é verdade que é urgente continuar a falar sobre o caos humanitário que o Afeganistão vive e as consequências nos direitos das pessoas e nas suas liberdades individuais.
O regime talibã proibiu a música. Ser músico em território afegão é causa suficiente para se ser condenado à morte. Como pode um regime destruir, deliberadamente, instrumentos e o património musical de um país? Como pode um regime considerar a música “um vício”? Como poderia – penso eu – viver num país em que não poderia expressar, em palco, a minha forma de ver o mundo?
São tudo perguntas às quais não consigo responder. Mas conheço bem quem, embora num corpo que sofre e num coração despedaçado, imprime, nas suas atitudes, uma resposta. Quando o meu percurso académico ainda se fazia no Conservatório de Braga, conheci, in propria persona, os rostos de quem fugiu do seu país para poder ser músico e que Portugal soube muito bem acolher, primeiro em Lisboa e depois em Braga e Guimarães. Conheci o corajoso Dr. Ahmad Sarmast, presidente do Instituto Nacional da Música do Afeganistão (ANIM), que tudo faz (e sempre fez) para que jovens músicos da minha geração pudessem fazer aquilo que os faz felizes, numa ousadia que quase lhe custou a vida. Hoje estão em Portugal, com uma vida mais estável. Aos poucos, alguns vão tendo contacto com as suas famílias. Com a Orquestra ANIM, fazem concertos por todo o país e por todo o mundo. A mim e a muitos dos que se cruzaram com eles deram uma lição muito importante – ainda que vítimas de um atentado à humanidade, sempre foram rostos de esperança. Reconheço-lhes a coragem, a força e a perseverança que têm e que tão bonita é de se ver.
Num mundo cada vez mais desumano, ainda há pessoas que nos mostram que precisamos de lutar pela humanidade. E há pessoas, do outro lado, que continuam a mostrar que o respeito pela diversidade, pela interculturalidade vale a pena. Tudo isto dá sentido à nossa forma de estar no mundo. Mas muito há para fazer. Por isso, permitindo-me acrescentar um verso ao belo poema de Eugénio de Andrade, caros leitores, é urgente sermos Humanos.
(P.S. para quem quiser, recomendo a visualização dos documentários “Salvar a Música em Cabul” e “Longe de Cabul”, ambos da RTP. Como estamos em período de férias, o meu desejo de bom descanso, para quem ainda for o caso)