24 abril 2024 \ Caldas das Taipas
tempo
18 ºC
pesquisa

Vitórias de Sangue

Pedro Mendes
Opinião \ quinta-feira, outubro 21, 2021
© Direitos reservados
A última grande bomba no futebol mundial não foi mais um grande golo de Messi ou Ronaldo, embora ambos continuem a prestar provas da sua já inenarrável genialidade pelos campos desta Europa do futebol

Mas, desta vez, a bomba caiu, com estrondo, no norte de Inglaterra, mais concretamente em Newcastle upon Tyne. O Principe Herdeiro ao Trono Saudita, Mohammed bin Salman, acaba de comprar o Newcastle United. O Newcastle United não é o primeiro, e seguramente não será o último, clube europeu a ser comprado por magnatas, sendo que não é sequer o primeiro a ser comprado por estados, de forma indirecta. Neste caso é a Arábia Saudita, mas noutros casos já foi o Manchester City a ser comprado pelos Emirados Árabes Unidos, ou o Paris Saint Germain a ser comprado pelo Emir do Qatar.

Não me entenda mal, caro leitor. O dinheiro já há muito que interfere no futebol das formas mais estranhas, seja através de fundos americanos mais ou menos obscuros, fundos chineses de capital duvidoso ou ainda da indústria da construção civil espanhola ou dos grandes magnatas do imobiliário e indústria italianos. Não podemos ser puritanos ao ponto de dizermos que é este dinheiro que vai levar o futebol para caminhos apertados. O problema com estes dinheiros em particular, como é o caso do dinheiro do Saudi Arabia's Public Investment Fund, é que ele emana directamente de estados com as mãos sujas de sangue, que desrespeitam reiteradamente os direitos humanos, que mataram o jornalista Jamal Khashoggi e que usam o seu dinheiro para comprar legitimidade e relevância internacional.

Que nós na Europa, que nos orgulhamos dos nossos princípios e que fazemos deles bandeira, deixemos que isto aconteça pelas mãos dos nossos clubes, dos clubes das nossas cidades e que representam as nossas massas sociais, é que é grave. Os nossos princípios não devem ter um preço, e as instituições, sejam elas do futebol ou dos estados, têm de ser o garante dessa inviolabilidade de princípios. Há ainda neste caso particular do Newcastle United uma aberração que me assalta a alma: os festejos dos seus adeptos assim que foi finalizada a compra do clube. Enquanto adepto de futebol, adepto do clube da minha cidade, que representa uma grande parte da base social da minha terra, não posso deixar de ficar perplexo com estes festejos. Bem sei que na cabeça destes adeptos estão hipotéticas vitórias futuras, mas não posso deixar de pensar que essas vitórias serão vitórias sujas de sangue, e essas vitórias não deveriam ser motivo de festejo por adepto nenhum.

Não há derrota maior do que uma vitória de sangue, e não haveria maior vitória do que a derrota do futebol enquanto instrumento de legitimação de regimes corruptos e assassinos. Quanto mais cedo os adeptos do futebol perceberem isso, mais cedo perceberão que o que os une no futebol é o sentido de comunidade e de pertença, e não uma qualquer vitória ao preço do sangue de inocentes a escorrer das nossas mãos.