E se fosse consigo? Acontece aos melhores.
As relações entre os particulares e a administração pública foram, são e serão tensas.
Na questão da propriedade imobiliária, as tensões, na maioria dos casos, situam-se no conflito de interesses na fronteira do público e do privado.
As tensões que geram conflitos efectivos devem resolver-se pela via consensual, por acordo. Se o conflito estiver extremado, a sociedade moderna organizada em estado de direito democrático criou os tribunais, independentes e imparciais, para dirimirem as questões que lhe são levadas para decisão.
Os Tribunais aplicam a Lei – em sentido amplo - e a Constituição. A Lei e a Constituição da República estão assentes em princípios jurídicos que lhe dão sentido e validade.
Na última sessão da Assembleia de Freguesia, o PS aprovou uma deliberação que confere poderes, pelo menos formais, à Junta de Freguesia para reverter uma parte da Viela do Canto para o domínio público.
Esta deliberação vista assim, na singeleza do enunciado, até parece justa e justificada.
No entanto, há factos que estão fixados que têm de ser relevados.
Assim, a cedência ao particular de parte da Viela do Canto teve a aprovação da Junta de Freguesia e Assembleia de Freguesia de Caldelas, ambos com maioria absoluta do PS.
O acordo data de 1997.
Houve contrapartidas que o particular teve de cumprir: alargou e empedrou a Viela do Canto com calçada portuguesa até à fonte pública.
O acordo foi cumprido por ambas as partes.
O particular, autorizado, fechou a parte superior do caminho, desde a extrema do seu prédio até à Avenida da República, integrando o caminho no seu prédio.
Desde essa data, usou e fruiu o leito do caminho como se verdadeiro proprietário fosse, realizando obras, aparentes, nesse espaço em crise.
O parecer jurídico solicitado pela Junta de Freguesia indicia que uma decisão de reversão de parte do caminho será difícil, morosa, e onerosa tendo em conta, no cenário mais negativo, a oposição, inclusive judicial, do possuidor do terreno que era parte da Viela do Canto.
A questão tem de ser olhada de mais do que uma perspectiva. Se fosse um particular a negociar com o actual possuidor do caminho, outro particular, a questão nem se punha: a invocação e prova dos caracteres da posse cuja verificação levava à declaração da aquisição por usucapião seria bastante.
Como é uma entidade pública, as hipóteses de sucesso da invocação nulidade do “negócio” aumentam.
No entanto, a essência mantém-se: os órgãos da freguesia estão a declarar o contrário do que declararam há 27 anos.
E se se pede boa fé aos particulares nas relações entre si, à administração pública deverá pedir-se o dobro da boa fé; isto é, a exigência mais intensa de um comportamento honesto, correcto e leal.
Se 27 anos depois, qualquer entidade, seja pública ou privada chegasse junto de qualquer um dos cidadãos e dissesse, passe para cá o caminho que possui porque o acordo que fizeram connosco não é ou foi válido. Como reagiria cada um de nós?
Pode haver até fundamentação jurídica para tal atitude, mas que não é honesto não é; não é correcto.
Dar o dito por não dito ao fim de 27 anos principalmente quando o particular confiou que a sua posse era definitiva, pois pagou o terreno com obras; integrou-o na restante propriedade, fez obras no próprio terreno para o usar, gozar e para fruir a restante propriedade, não se pode aceitar.
A lei não é neutra em termos de valores. Mesmo quando a Lei protege o direito do titular, este tem de o exercer de acordo com o princípio da boa fé e dos bons costumes. E quando o assim não faz, a Lei pune este titular do direito com a sanção de “abuso de direito”, impedindo-o de retirar dele os efeitos jurídicos normais.
O que representa a deliberação da Assembleia de Freguesia é uma desonestidade, totalmente violadora dos princípios da Boa Fé plasmados na Lei.
O PSD não alinha nem aprova deliberações que, executadas, configuram uma desonestidade.
E se fosse consigo?
(ndr: artigo originalmente publicado na edição de janeiro 2025 do jornal Reflexo)