Planear cidades
Há um pequeno miradouro sobranceiro ao Largo da Mumadona. O acesso, um pouco recôndito, faz-se através do parque do Castelo. Dali observa-se a praça e, no alinhamento certo, a Avenida Cónego Gaspar Estaço. Se seguirmos aquela linha recta com o olhar, encontrarmos o teleférico – perfeitamente alinhado com o arruamento. É uma imagem de que gosto. Uma imagem de planeamento.
O desenho da Avenida Cónego Gaspar Estaço faz parte do Projecto Geral de Melhoramento da Cidade de Luís de Pina. Foi esse projecto que permitiu à cidade alargar-se para Leste. Aquela área – que além da Cónego Gaspar Estaço, compreende também as ruas de dr. Eduardo de Almeida e padre Torcato de Azevedo, bem como a Alameda Abel Salazar, em frente ao renovado Liceu, foi planeada entre 1923 e 1925. E, no entanto, quase um século depois, aquela artéria continua a ser tão bem desenhada, pensada e – sobretudo – dimensionada como nesse tempo.
Estou consciente de que hoje não vivemos já no tempo em que se rasgavam grandes avenidas para permitir o crescimento das cidades. O espaço já não abunda e a tendência de crescimento da população inverteu-se. Também já lá vai – felizmente – a tendência para a demolição de bairros interior como era próprio do higienismo que marcou as grandes cidades no século XIX – e Portugal, como então era costume, um pouco mais tarde. Não é esse o ponto central do meu argumento. O que me interessa sublinhar com este exemplo é a virtude do posicionamento de Luís de Pina e dos seus contemporâneos perante a cidade e a forma como a planeavam. O que então se fazia – e devia continuar a fazer-se – era pensar as intervenções e os investimentos em função do horizonte temporal a que eles podiam responder.
Este é um dos paradoxos da democracia. O horizonte temporal do planeamento deixou de ser um futuro longínquo, a possibilidade de fazer um investimento capaz de deixar um lastro histórico. O horizonte temporal passou a ser o período de validade de um mandato. Pensa-se hoje em obras que possam ser executadas num horizonte temporal de quatro anos e que, por isso, muitas vezes não são suficientemente reflectidas. Não se espanta, pois, que a sua utilidade se esgote muitas vezes ao fim de pouco tempo. Quanto muito, uma década. E quando falamos de intervenções numa cidade - com os custos financeiros, logísticos, sociais e simbólicos que representam – uma década é muitíssimo pouco tempo.
Não é possível hoje planear uma cidade sem estar atento ao que está a mudar no mundo. Às mudanças tecnológicas, sociais e organizacionais, mas também à emergência de novos padrões de consumo, que tendem a desvalorizar a propriedade e a ostentação em detrimento de novos racionais económicos e padrões de conforto. Isso vale, por exemplo, para a hotelaria. Quem imaginaria há um par de anos que a classe média-alta preferisse, hoje em dia, o conforto discreto de uma guest house ao luxo impessoal de um hotel? Ou também para a mobilidade. Atente-se na crescente percepção da importância de estilos de vida saudáveis, na emergência da mobilidade suave ou no fim iminente do primado do automóvel individual, que plataformas de car sharing ou outras plataformas de economia de partilha estão a anunciar.
Um decisor público tem que estar alinhado com estas mudanças e ser capaz de reflectir sobre elas. Tem que tomar decisões que ultrapassem os limites temporais dos seus próprios mandatos e capazes de antecipar tendências décadas adiante. Tem que ser capaz de deixar obra que, tal como a Avenida Cónego Gaspar Estaço, permaneçam, quase cem anos volvidos, absolutamente moderna.
Pelo contrário, não pode reduzir o exercício de decisão a uma escolhe entre ser reeleito ou tomar uma decisão que se revele acertada no futuro. Porque, se assim for, corre o risco de ter como único lugar na história aquele que corresponde à dimensão do seu erro.