O (meu) duelo com a COVID
Achamos que somos fortes e imunes ao vírus da COVID-19, até ao dia em que nos ligam às 03 horas da madrugada a informar que testamos positivo, depois de uma bateria de exames realizados no hospital. Pouco antes, as análises clínicas, dentro dos parâmetros convencionais, não indicavam o desfecho. A radiografia nada assinalava e a avaliação pulmonar nada contradizia. “Só temos de esperar pelo resultado do teste”, dizia a zelosa profissional de saúde, na porta de saída da “Área COVID” do Hospital, enquanto tocava na campainha mais uma pessoa com suspeitas da doença. Era uma jovem. Não tinha mais de 17 anos. Mas tossia como se tivesse o contrário dos algarismos.
Fui para casa tentar dormir. A noite anterior, de sábado para domingo, já tinha sido passada em branco com dores de cabeça, confusão mental, pesadelos múltiplos, suores frios, um cansaço excessivo, fora do comum – alguns dos sintomas que se confundem com a rinite alérgica, que tenho desde pequeno. As horas avançavam e, quando já pegava no sono, a chamada telefónica com a confirmação do teste positivo interrompia, de vez, o sonho de uma noite tranquila. Os olhos ficaram pregados na escuridão do chão. Em silêncio. Tal e qual como o inimigo chegara. Começava ali o duelo contra o adversário invisível, enquanto fazia mentalmente o filme dos últimos dias, na angústia de poder ter contagiado alguém.
Numa corrida contra o tempo, foi necessário passar para o papel com quem tinha falado naquela semana, onde estive, por onde circulei, com quem reuni, em síntese, fazer a reconstituição mais fidedigna para quebrar cadeias de contágio. Sem demoras, liguei a cada um dos mais de 50 contactos com quem tinha estado. Uma larga maioria reagiu bem. Mas nem todos. E essa é outra dor desta pandemia! A prioridade, porém, era travar o contágio! Com uma chamada, ficaram prevenidos e retidos em casa, a aguardarem pelo telefonema da DGS, que indicou depois as instruções clínicas a adotarem. Correu bem. Mais do que uma aplicação informática, é importante haver agilidade e sentido de responsabilidade individual, cientes de que estamos a viver em… pandemia. E todos sabemos quão influente é a comunicação numa guerra!
SUPERAR O VÍRUS
Começavam os 14 dias de refúgio. Aquele período em que, a qualquer momento, achamos que vão surgir notícias de que contagiamos quem mais gostamos. Cumprida a tarefa de facilitar o trabalho à DGS, volta-se a refletir. As duas tonturas (medonhas) do dia anterior faziam, agora, sentido. A garganta seca também, bem como as dores musculares. Ou a mudança drástica de humor. Não tinha febre. Nunca tive. Nem falta de paladar ou ausência de olfato. A tosse apenas surgiu no terceiro e quarto dias de isolamento, sobretudo quando conversava mais um pouco do que o habitual. Por recomendação médica, as chamadas telefónicas e as SMS foram reduzidas ao estritamente necessário. Foi melhor assim! Apontei todas as chamadas não atendidas e, ainda hoje, sem pressas e com o tempo que merecem, continuo a devolver e a agradecer os inesquecíveis gestos e surpresas dos Amigos, a preocupação de pais e familiares, a cortesia e amizade de colegas de trabalho, o cuidado de representantes autárquicos, entidades civis e religiosas do nosso concelho, entre outras manifestações de afeto, com destaque para o mais alto responsável da entidade que atualmente represento profissionalmente, Domingos Bragança. Verdadeiramente irrepreensível e exemplar.
Em todo este processo, nunca saí do quarto. Tomava lá o pequeno-almoço, almoçava, lanchava e jantava. Sempre no mesmo ambiente. Tenho para mim que o descanso é fundamental no combate à COVID-19. Se não tivermos atividade, o vírus – que procura o contágio para ter “vida” – acaba por “falecer” entre quatro paredes. É no quarto que se trava a batalha. Cansativo, sim! Desesperante, de certeza! Mas é preferível ficarmos 14 dias ali confinados do que adiarmos ‘sine die’ o restabelecimento total. A primeira semana foi difícil, muito difícil. Por estar afastado de tudo e de todos, mas também pelo facto dos sintomas anteriormente descritos se repetirem, sem aviso prévio, ao longo das 24 horas do dia, com a privação do sono a ser uma constante.
Nesta fase, não sabemos como vai reagir o nosso organismo ou como o vírus se vai desenvolver e comportar-se no dia seguinte. O medo do desconhecido é (mesmo) uma incógnita, porque a sintomatologia varia de pessoa para pessoa. Nunca saber como ia acordar era algo que inquietava, causava natural ansiedade! Deu para perceber, a tempo, que estes estados de alma são terrenos férteis para o vírus, que se “alimenta” desta adrenalina e deste desassossego. E que, por essa razão, eram precisos, pois, quilos de paciência! Muitas vezes sorria para não preocupar os outros. Mas a vontade era pouca. Isto porque a Patrícia, minha esposa, também tinha testado positivo. E, com dois filhos menores em casa, de 5 e 11 anos (ambos sempre negativos), a gestão familiar ganhou contornos de uma epopeia dos tempos modernos.
HORA DE DECIDIR
Durante este confinamento, os meninos ficaram sempre connosco. Preferimos assim, uma vez que não podiam estar com os avós, por serem grupo de risco. Eu, no quarto, isolado. A Patrícia, com o seu “escudo”, sempre de máscara, a cuidar das crianças, passava a ter uma tarefa gigantesca em mãos: gerir as 24 horas, com distanciamento social, tratar das lides domésticas e profissionais, preparar as refeições, comer à vez, acompanhar o percurso letivo dos meninos, que não podiam ir à escola, mas que tinham de estar a par da matéria! E eu no quarto… a procurar interagir, por videochamada, no momento de ajudar a explicar os trabalhos de casa. Bendita tecnologia. Que me transformou em “baby-sitter digital”, quando foi necessário a Patrícia se ausentar para levar o filho mais velho a fazer o primeiro teste de COVID no Multiusos e, através de uma web câmara, entreter a mais pequena, que brincava na sala de casa, à espera da sua vez para também ir testar. Correu bem.
Sem (ainda) qualquer tratamento ou vacina, prevalece em nós o sentimento de impotência. Pouco podemos fazer, enquanto estamos em isolamento. Procuramos saber como estão os nossos amigos que testaram positivo. Contamos a nossa experiência. Ouvimos a deles. Sabemos que há casos (muito) mais graves em hospitais, mas concordamos que o repouso absoluto é o melhor antídoto neste combate. Que é fundamental não ter atividade para não “nutrir” o vírus. Que é capital o uso de máscara, antes e após uma infeção. Disso não tenho a menor dúvida: máscara em qualquer sítio, mesmo na rua! Que é determinante evitar contactos sociais e adiar a participação em festas com elevado número de pessoas. Pelo menos, enquanto durar a pandemia…
Pensamos que é sempre aos outros que acontece, mas não é. Neste “novo normal”, é importante haver cuidados redobrados e, sobretudo, estarmos especialmente atentos onde colocamos as mãos: garrafas (água, sumo, vinho), talheres de uma travessa de uma refeição, cadeiras, mesas, puxadores de portas e outras superfícies. Não é absurdo, não! São atos tão simples e rotineiros que nem nos apercebemos que os cometemos diariamente. E depois, inadvertidamente, levamos a mão à boca, ao nariz ou aos olhos e a infeção acaba por ser consumada.
E tudo começa, habitualmente, com uma permanente e incómoda dor de cabeça, um zumbido que arrelia e que afeta o nosso estado de espírito. O chá de gengibre com mel e limão, tomado em doses bidiárias, ajudou imenso. As romãs também, com a sua capacidade de reforçar o sistema imunitário. A ingestão de água foi (e é) deveras crucial. A hidratação purifica o corpo e revelou-se decisiva para uma boa e eficaz recuperação. Afinal, o vírus tem de ser expulso de alguma forma. E resultou, sim! Os sintomas foram desaparecendo lentamente, sem recurso a nenhum fármaco. Preferi assim, porque a situação também assim se proporcionou! O organismo regenerou-se por si.
A BICICLETA E A MÚSICA QUE (NOS) TOCA
Em três dias, perdi quatro quilos – já recuperados, entretanto! Esta anormalidade no peso foi demasiado surpreendente, sobretudo porque nunca me neguei a alimentar-me convenientemente. Antes pelo contrário. Comi sempre. E bem. Fazia um esforço tremendo para contrariar as “investidas” do vírus. Aliás, nos primeiros dias, após as refeições, permanecia uma sensação de enfartamento. E o estômago queria rejeitar. E regressavam as náuseas. E mais dores de cabeça. E o trauma de comer. E o receio do desmaio. Numa ocasião, após ter terminado de almoçar, quase desfalecia. Valeu-me um copo de água e um pacote de açúcar que tinha colocado na mesinha de cabeceira no dia anterior. Foi a última das três (terríveis) tonturas.
Saí do quarto, pela primeira vez, a 28 de setembro. Confinei a 13, esse algarismo tão simpático. Ao longo deste período, são inesquecíveis os pretextos diários que a minha filha mais nova usava para me tentar ver. Ora ia pela varanda com o seu triciclo para me espreitar sorrateiramente pela porta de vidro, ora batia na porta do quarto a perguntar se o almoço (ou o jantar) estava bom. Uma vez, vi-a na varanda, à distância. “O que estás aqui a fazer?”, perguntei-lhe. “Papá, a bicicleta ficou a noite toda aqui e eu vim buscá-la, porque ela tinha frio!”. Justificação perfeitamente plausível e logo aceite, após me ter beijado com o olhar. Há que cuidar do património, pois claro! Foi para dentro de casa e eu pude sair pelo acesso da varanda. Nunca houve cruzamentos no interior da residência. Ia fazer o segundo teste, depois do inicialmente positivo. Já tinham passado duas semanas. Entro no carro e ligo o rádio. Ironia do destino. A música que toca naquele exato momento é o tema vimaranense “Tantos Beijos Por Dar”. Não podia haver coincidência mais animadora, instantes antes de ir para a fila de um teste.
“Romper o cerco, saltar o muro
Vencer o medo e sair do escuro
Já são alvores de uma batalha
Soam clamores!
Soam tambores que o vento espalha”.
Foram os versos que me acompanharam enquanto ligava a ignição e iniciava marcha em direção à Unidade de Rastreio, no Multiusos, já com o volume da música mais alto. Teste feito. Contagem decrescente para saber se havia motivos para soarem clamores. A espera, por muito curta que seja, parece sempre longa, enorme, eterna. O desgaste psicológico é imenso. Começam a surgir mensagens a perguntar por novidades. Ainda nada! Chega o teste. Negativo! Inevitável não ajoelhar no chão daquele quarto, onde o vírus se anunciou. Foi tão instintivo como reconfortante. O “bicho” tinha acabado de ser esmagado. À joelhada.
POSITIVO, INCONCLUSIVO E… NEGATIVO!
Faltavam os resultados dos filhotes e da Patrícia. Os mais pequenos voltaram a testar negativo. A minha esposa deu “inconclusivo” e teve de repetir o teste. O esforço e o sacrifício que tinha feito para eu recuperar totalmente refletia-se agora. Era tempo de invertermos papéis. Era altura de assumir a gestão das 24 horas, tratar das lides domésticas e profissionais, preparar as refeições para os três, comer à vez, acompanhar o percurso letivo dos meninos, fazer os trabalhos de casa! Correu bem. Para nós, a “recompensa” chegou com o filho mais velho a comunicar-nos a avaliação à disciplina de Matemática (86%) e de Ciências (70%), após ter assistido somente a três aulas presenciais. Orgulho, evidentemente!
Ao fim de um mês e quatro angustiantes dias, todos tínhamos testado negativo. Uma alegria desmedida, pois! Parecia que o Vitória tinha marcado dez golos seguidos! Surpreendida, a mais nova não percebia a razão dos festejos, mas o olhar do mano, que sorriu timidamente para o chão, ainda está bem vivo na memória.
Quem testa positivo, tem uma imunidade de três/quatro meses. Neste período, a possibilidade de reinfeção é muita reduzida. Depois, volta-se a estar sujeito. Todos os cuidados são (mesmo) poucos. Definitivamente, só com sentido de responsabilidade conseguiremos triunfar. O outono está apenas a começar e o inverno ainda vem aí. “Papá, não há uma máquina para tirar o coronavírus?”, questionou a filhota, de 5 anos, na primeira saída, depois do martírio de 5 semanas. Que já passou! Graças, sem dúvida, ao profissionalismo e dedicação dos nossos profissionais de saúde. No dia do regresso ao trabalho presencial, parecia que tinha entrado, já, em 2021! E, quando entra um ano novo, há motivos para sorrir. Que o “novo ano” chegue também para si, que segue em duelo contra este inimigo invisível...