Memórias de um Militar
Na madrugada de uma quinta-feira qualquer de Abril de 1974, o céu sobre o Porto estava cinzento, talvez ainda mais cinzento do que o habitual. Uma inquietação pairava no ar, um burburinho vago, como se o vento soubesse qualquer coisa que os homens ainda não sabiam.
O País, esse parecia adormecido, mas não por muito tempo.
Naquela madrugada de Abril, a rotina desfez-se. Os rumores que corriam pelos corredores e pelas praças traziam uma inquietação, feita de silêncios prolongados e olhares cúmplices. Ninguém sabia ao certo o que estava para acontecer.
Uma força do centro de instrução de condutores Auto de Porto (CICAP) ocupou o quartel general da Região Militar do Norte, transformando-o num posto de comando da Região Norte. Foi o primeiro alarme oficial das forças governamentais.
Durante o resto da madrugada, outras unidades militares foram sendo ocupadas, num país que acordava sem saber que estava a ser reinventado. Através dos comunicados, foi pedido à população que se mantivesse em casa, mas o povo, teimoso e curioso, saiu á rua. Não por desobediência, mas porque o silêncio do medo estava a ser substituído por algo novo. Uma espécie de esperança.
O medo durante as primeiras horas andou por perto. A verdade é que o pior podia acontecer. Tudo poderia ruir. Mas, à medida que o sol subia, também a coragem crescia. E com ela, o número de passos nas ruas.
A avenida mais imponente da cidade do Porto, foi invadida pela população. Pessoas de todas as idades, com os olhos arregalados e o peito apertado. Não vinham armados, mas vinham atentos. Vinham para assistir, para participar, para dizer “presente” à sua maneira. E a revolução, ainda que feita por militares, passou a ter um rosto civil. Passou a ser de todos.
Cinco décadas e um ano separam aquele 25 de Abril de 1974 de hoje. Meio século passou, mas esta história, a história de uma revolução que mudou Portugal, ainda se mantém viva e fresca na memória de todos aqueles que a vivenciaram.
Hoje, pela primeira vez, sinto que consigo contá-la como ela realmente foi. Não apenas um acontecimento distante, mas como algo vivido, sentido e palpável.
Esta crónica não seria possível sem um informador, sem uma testemunha que ao longo dos anos, foi-me revelando os detalhes, as pequenas grandes coisas que marcam o que é realmente importante. Não falaria com a mesma intensidade sobre o 25 de Abril se não tivesse ouvido o relato de quem o viveu na pele, de quem estava lá, entre tanques, entre gritos de liberdade e os silêncios da madrugada.
Este informador, que me deu as palavras, foi o meu Pai.
Foi em finais de Fevereiro que chegou à cidade do Porto. Fora convocado para recruta no centro de instrução de condutores Auto de Porto (CICAP). Tinha vinte e poucos anos e mais dúvidas do que certezas. Os primeiros dias foram passados a treinar, a aprender a conduzir com precisão e disciplina. Mais tarde teria como ofício motorista dos oficiais.
Em 1974 ainda era um jovem Militar. Hoje, adulto, contou-me sem qualquer pressão, a sua vivência, a sua revolução.