Um sonho adiado...
Eram 05h30 da manhã quando Clotilde olhou para o relógio da parede da cozinha. Poucas eram as pessoas que já estavam acordadas numa cidade que permanecia adormecida. Envolta do silêncio da madrugada, Clotilde endireitou o seu xaile sobre os ombros, apertando-o a cada passo.
Era mais um dia de trabalho. A fábrica esperava por ela, como esperava todas as madrugadas. O barulho das máquinas, o cheiro a ferro e óleo, o ritmo implacável da produção. Diziam que este era o seu mundo. Um mundo que pouco lhe dava espaço, que lhe exigia tudo sem prometer nada, onde os seus sonhos eram frequentemente adiados ou simplesmente esquecidos.
Quando terminou o ciclo preparatório, o pai chamou Clotilde com a intenção de anunciar que dali em diante e até se casar e constituir família, começaria a trabalhar na fábrica de um conhecido seu. “É uma bela oportunidade minha filha, ajudas a família e aprendes um ofício”. Era certo que o pai de Clotilde nunca iria considerar outra opção. Ainda era uma criança, mas a partir daquele dia, tornou-se uma adulta. As suas mãos que deveriam segurar livros, foram certamente calejando, habituando-se ao peso das engrenagens e à aspereza do tecido industrial.
Nunca se atreveu a dizer que tinha um sonho, ser professora. Naquela época, os sonhos eram, maioritariamente, luxos e os luxos não cabiam no orçamento. A família de Clotilde era honesta, com muitos filhos e poucas posses, e, portanto, mal podiam encaminhavam os filhos mais velhos para empregos. A verdade era que Clotilde não conhecia outra realidade e sempre se conformou com o que lhe diziam.
Os anos foram passando, e Clotilde trocou o emprego da fábrica pelo lar. Estava de casamento marcado e sabia que a partir daquele momento o seu tempo seria dedicado às tarefas do lar. Mais uma vez não questionou. Deixou para trás o som das máquinas para se dedicar à casa e aos filhos. Fez o mesmo que tantos outras mulheres iam fazendo, dedicar-se apenas à sua família.
Clotilde não tinha razões de queixa do seu casamento. Tinha um marido correto, cumpridor das suas responsabilidades. Os seus filhos puderam estudar. Sempre que os ajudava nos trabalhos de casa, o pensamento fugia para o passado. Imaginava-se a ensinar uma sala cheia de crianças, a escrever no quadro, a explicar contas e histórias. Mas era apenas isso: um pensamento.
Aos poucos foi-se apercebendo que a sua vida melhorou após o casamento. Apesar de não ter construído uma vida profissional de sonho, tinha construído uma família muito bonita. Foi neste período que comprou os seus primeiros livros, um pequeno luxo que sempre desejara.
Com ajuda do marido, que partilhava o mesmo gosto pela leitura, criou uma pequena biblioteca em casa. As noites eram passadas no sofá lado a lado, mergulhando em diversas histórias.
O tempo foi passando e enquanto lia um livro sentada no sofá apercebeu-se que a sua neta estava muito feliz. “Vó tenho uma grande novidade para te contar, entrei no curso de Educação Básica, vou ser professora”. Clotilde sentiu um aperto no peito e sem evitar, as lágrimas encheram-lhe os olhos. Percebeu, naquele instante, que o tempo, apesar de lento, trazia mudanças. Que o papel da mulher se tornara diferente. Aos poucos, as portas que para ela estiveram fechadas abriram-se para outras mulheres depois dela.
E, ao olhar para a neta, Clotilde soube que, de alguma forma, o seu sonho não se perdera. Apenas esperou pelo momento certo para florescer.
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