22 novembro 2024 \ Caldas das Taipas
tempo
18 ºC
pesquisa

Escavacar

Samuel Silva
Opinião \ quinta-feira, novembro 08, 2018
© Direitos reservados
É incompreensível que uma cidade que tem um objectivo “verde”, o tipo de investimento mais vezes anunciado num ano de mandato autárquico sejam precisamente estradas.

Às vezes acontece. Este texto estava a escrever-se mentalmente desde o início de Setembro, mas ainda não tinha passado ao papel. Bem, na verdade, já havia qualquer coisa escrita. Um SMS. É o início desta história. Já lá iremos.

Ainda a ciclovia não tinha sido inaugurada e decidi percorrê-la, no troço que corresponde à antiga linha de caminho-de-ferro que ligou Guimarães e Fafe até ao ano em que nasci. Por esse motivo, nunca antes tinha cruzado a totalidade daquele troço da via. Esse era o primeiro motivo de curiosidade. O outro era conhecer a obra, evidentemente.

A experiência não podia ter sido mais positiva. Ao contrário de outros troços da ciclovia, que têm problemas graves (demasiados atravessamentos; inclinações dignas de algumas “clássicas” do ciclismo de estrada), o troço entre a estação de caminho-de-ferro e a Academia de Ginástica é maravilhoso. Trata-se, na realidade, mais um equipamento de desporto e lazer do que uma solução para pôr a bicicleta no centro da nossa vida urbana, mas, é preciso reconhecê-lo, é um bom esforço municipal.

Marcou-me sobretudo a possibilidade de redescobrir a cidade, que é um exercício que vou fazendo regularmente desde há vários anos. Redescobrir a paisagem urbana – a perspectiva através do qual vemos o castelo e o Paço dos Duques ou a Igreja de Santos Passos, no Campo da Feira, por exemplo – e a nossa própria noção de cidade. Guimarães é menos urbana do que muitos gostariam que fosse. Atravessar campos de milho ou encontrar cavalos e vacas a pastar a escassos metros do coração da zona urbana é uma experiência que nos faz repensar alguns conceitos.

Foi neste contexto de maravilhamento que enviei um SMS a um amigo que sei interessar-se por estas questões. Cito de memória o que lhe escrevi, porque as mensagens de telemóvel duram ainda menos do que os jornais. “Tens que vir percorrer a ciclovia. É incrível a forma como redescobres a cidade. Mas também dei comigo a pensar: quanto tempo vão demorar a escavacar isto?”.

Passaram poucos dias e, a 30 de Agosto, leio uma notícia com a resposta à minha dúvida. “Novo arruamento poderá acompanhar Ecovia para aliviar trânsito da Avenida D. João IV”. Ou seja, ainda a ciclovia não estava oficialmente aberta e já havia planos para escavacá-la.

Para mim, é incompreensível que a autarquia faça um esforço nobre de criar um pequeno pedaço de paraíso na cidade e aparece logo alguém com um plano para lhe levar o inferno: ruído e gases de tubos de escape. É também incompreensível que uma cidade que tem um objectivo “verde”, o tipo de investimento mais vezes anunciado num ano de mandato autárquico sejam precisamente estradas. Um dia talvez consiga entender a coerência disto. Não vou esperar sentado. Há sempre a ciclovia para percorrer, enquanto não a escavarem.