Biblioteca das Raparigas e Biblioteca dos Rapazes : Onde fui parar?
A jornada da escola desde os meus tempos de estudante até aos de hoje tem qualquer coisa de rocambolesco. A leitura a a escrita, por arrastamento, foi marcada por uma constante evolução, refletindo as mudanças sociais, tecnológicas e culturais.
Nasci num tempo em que havia os livros proibidos pela censura: «Os Maias», «O Crime do Padre Amaro» de Eça de Queiroz, «O Amor de perdição» de Camilo Castelo Branco, o canto IX dos Lusíadas, inexistente nos livros que comprávamos, e muitos outros.
E as próprias leituras eram guiadas, pois havia a Biblioteca das Raparigas e a Biblioteca dos Rapazes.
Apesar disso, a minha relação com os livros começou num ambiente familiar, em que os livros sempre estiveram presentes, nem sempre acessíveis a todos, atendendo à idade, até termos acesso total. Ou seja, li os chamados «livros proibidos», mais cedo do que os demais, porque os tinha em casa, o que foi fundamental para despertar a minha curiosidade pelo conhecimento, principalmente quando abordavam temas considerados subversivos ou desafiadores ao status quo, como por exemplo, o incesto. Desde cedo, percebi que os livros eram portais para outros mundos, histórias e informações que iam além da minha experiência diária.
Já não falo das aulas que me iam fazer parecer préhistórica. Sinto-me assim muitas vezes. O que digo não é percetível para a maioria dos que me lê e, embora recordar seja uma forma de transmitir informação e conhecimento, nem sempre é bom para quem recorda. Não fiquei traumatizada com as regras absurdas que existiam nos liceus, nem com o que nos exigiam, fosse justo ou não. E recordo um episódio de uma professora de Literatura Portuguesa que, no 7º ano (equivalente hoje ao 11º, o 12º foi inventado a seguir) nos mandou ler nas férias de Natal ou Páscoa (já não sei quais) os livros de Alexandre Herculano «O Bispo», «O Monge de Cister» e «Eurico, o Presbítero», as obras de leitura obrigatória deste escritor. E realço que não líamos excertos deste ou daquele livro. Eram os livros na sua totalidade. Bem, no primeiro dia de aulas perguntou quem tinha lido as obras. Eu e mais duas colegas tínhamos lido (começou muito cedo o meu vício pela leitura). Ainda a estou a ver em cima do estrado, muito pequenina e magrinha, com voz esganiçada, a dizer:«Então, minhas filhas, considerem o escritor dado. Passamos ao seguinte». Escusado será dizer que o teste seguinte era todo sobre Alexandre Herculano.
Não sei se me traumatizou. Acho que não, porque, já professora, me encontrei com ela numa apresentação de livros e dei-me a conhecer e ela só me disse: «Se foste minha aluna, então vamos guerrear. Os professores têm direitos». Foi numa altura em que já a classe docente lutava por um lugar ao sol e eu ainda era uma novata nestas andanças.
Mas eu falava da leitura por género ao haver Biblioteca para Rapazes e Biblioteca para Raparigas. Onde o bom senso imperasse, todos liam os livros uns dos outros. Se não houvesse, liam mais tarde. Esta separação por género refletia as normas sociais da época, mas também evidenciava a importância de criar ambientes específicos para estimular o aprendizado de diferentes grupos, que, mais tarde, se unificaram, promovendo a igualdade de acesso e a troca de experiências entre todos os estudantes.
Não me lembro de ter visto Mark Twain na biblioteca do liceu, mas como tinha os livros em casa, nunca lá entrei ou muito raramente, já que a funcionária estava mais interessada com o silêncio e os armários fechados à chave do que em incentivar a leitura. Íamos fazer os deveres ou ler um livro que tivéssemos levado de casa.
Depois veio a pseudo democratização do ensino e o ensino obrigatório, que, durante muitos anos foi uma fantochada, e as bibliotecas amplas com os livros ao alcance da mão e as requisições domiciliárias, que se contavam pelos dedos.
Reconheço que o acesso ao conhecimento tem sido uma busca contínua por liberdade, inclusão e inovação.
E depois veio a TLEBS (Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário), a nova gramática, mas antes já tinham vindo mais duas. Para a mesma coisa eu aprendi quatro denominações.
Exemplo. O meu pai meu- adjetivo possessessivo (ainda hoje os franceses classificam desta forma), como aprendi, depois determinante possessivo,... e remeto-vos para a minha crónica do Reflexo de fevereiro de 2022 «O (Des)Acordo Ortográfico e a TLEBS» , ou corro o risco de me repetir.
A escola sempre foi um espaço fundamental na formação do indivíduo, e pergunto-me se o continua a ser. Segundo estudos feitos na Finlândia u na Suécia, acho eu, pela primeira vez a geração que se segue não é mais inteligente do que os pais. Causas? O embrutecimento face às tecnologias. Ainda dava aulas e vi dois alunos, sentados no mesmo banco, a dialogarem pelo telemóvel. Em casa, quantas vezes são os pais que lhes dão os telemóveis, pois vêm cansados, um ordenado não chega e dois para pouco dão, principalmente face a um ensino obrigatório grátis, no papel.
No passado, o ensino era restrito a uma parcela privilegiada da população, muitas vezes elitista e pouco acessível. Com o avanço das ideias democráticas, surgiram iniciativas para democratizar o ensino, tornando-o acessível a todos, independentemente de classe social, género ou origem. Nem que fosse fazendo o que fizemos: enviar a GNR a casa dos pais para deixarem os filhos virem para a escola.
Um curso não serve para nada, não os prepara para o mercado de trabalho. Apenas lhes fornece as ferramentas para poderem utilizar na vida ativa. Não é um curso superior que lhes vai garantir um emprego. É o que fazem por fora, os cursos disto ou daquilo, a aprendizagem de uma nova língua estrangeira, o aprender a tocar piano ou fazer parte de uma banda... o Pertencer ou ter pertencido a uma ONG (Organização Não Governamental, como o Rotary). É isso que é avaliado no mercado de trabalho.
Diz-se que o conceito de "escola democratizada" reflete essa mudança de paradigma: garantir oportunidades iguais, promovendo inclusão e diversidade. Só que a escola esqueceu uma coisa muito importante e que está presente em todos os lados. Os valores. Não basta usar a razão, há que usar o coração. E isso não se ensina. É intrínseco.
Os valores têm de ser inculcados em casa, continuados na escola e adquiridos pelos jovens para que a sociedade sinta e pulse como um todo e a empatia e a sinceridade e a humanidade possam existir e coexistir com o conhecimento que hoje é e amanhã já não existe. O jovem tem de ter a capacidade de se ajustar às mudanças desta vida frenética, mas só o fará se não estiver dependente das máquinas.
Não queiramos filhos robôs. Queremos seres pensantes com competências críticas, criativas e digitais. A escola automatizada, com o uso de computadores, plataformas online e recursos multimedia, amplia significativamente as possibilidades de ensino, mas afasta a capacidade de empatia, de fraternidade, de aquisição de valores essenciais para a sobrevivência do ser humano. Qualquer dia, e já não estará muito longe, a máquina estará a comandar o homem.
Além disso, a automação de tarefas administrativas e de avaliação que deveria tornar o processo de ensino mais eficiente, permitindo que os professores tivessem mais tempo para o acompanhamento individual dos alunos, só veio complicar ainda mais o que já era complicado. A parte burocrática, pelo que me contam, está cada vez mais sobrecarregada. Para quê?
E as desigualdades permanecem, porque bem todos têm acesso a telemóveis topo de gama ou computadores XPTO. Então?
Enchamos as escolas de livros, porque a leitura é uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade mais crítica, participativa e informada. Ela permite que os indivíduos compreendam o mundo ao seu redor, questionem informações e exerçam a sua cidadania de forma consciente. A promoção da leitura desde a infância, por meio de bibliotecas acessíveis e de ações educativas, é essencial para formar cidadãos capazes de contribuir para a transformação social e para os tornar cidadãos de corpo inteiro. Fala-se na criação de mais uma disciplina- Cidadania. Não faz ela parte do currículo de todas as disciplinas? Compartimentar para quê? Ela está lá.
É fundamental que continuemos a investir em políticas educativas inclusivas, na formação de professores e na ampliação do acesso às tecnologias com conta, peso e medida. Se queremos seguir na vanguarda da Europa, então paremos com os computadores e tragamos de volta os manuais, deixem os telemóveis e outros instrumentos digitais em casa, para poderem ser utilizados, sob a orientação de quem deve educar em primeiro lugar., os pais, a família. A escola é um complemento.
Assim, poderemos construir uma sociedade mais informada, crítica e capaz de enfrentar os desafios do mundo contemporâneo. A leitura e o conhecimento são, sem dúvida, as maiores ferramentas para o desenvolvimento humano e social, e o seu futuro está intrinsecamente ligado à nossa capacidade de inovar e promover a inclusão de todos no processo de aprendizagem, também com uma tecnologia controlada.