Mário Sousa, o centenário que tem “saudades da lavoura”
Relembra os tempos da tropa, e o “modo de vida de sempre”, a lavoura, de que tem saudades. Atravessou gerações e, mesmo com a audição a atraiçoar um pouco a conversa, ainda se sente “rijo”.
Primeiro desconfia, pergunta se é para filmar ao vislumbrar a câmara fotográfica. Depois, deixa-se ir numa viagem que se prolonga ao ritmo de quem completou 100 anos de vida. Mário Sousa atingiu, no passado dia 10 de setembro, essa marca, um século, sendo motivo de regozijo na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) de Sande São Clemente. Relembra, de pronto, as atividades em Lisboa quando cumpriu serviço militar. “Andei na tropa em Campolide, era piquete de vigia”, conta ao Reflexo o senhor Mário, como é carinhosamente tratado no lar de Sande São Clemente.
A conversa flui de acordo com a sua vontade, e à medida que a sua ténue audição vai permitindo, com a ajuda da fisioterapeuta Jenifer Torres. “Na tropa, fazia instrução e ginástica. Por vezes, no piquete, chegávamos a ficar 24 horas de vigia, e depois trocávamos”, recorda. Está no lar há sensivelmente três anos, desde o falecimento da esposa - Maria. Até então fazia apenas parte do Centro de Dia, sendo presença assídua nas visitas à sua companheira de vida.
Não contava chegar a uma idade tão avançada, reconhece. Chegar à idade do pai – 92 anos – era uma meta entendida como razoável para o senhor Mário Sousa. Mas a verdade é que ultrapassou essa idade e completou, então, um século. Passou a ser um objetivo a partir do momento em que fez 99 anos, o que lhe “provocou uma certa ansiedade”, conta a fisioterapeuta. “Qualquer tosse fazia-o logo dizer que já não chegava aos 100”, diz. Foi nessa altura que passou a movimentar-se numa cadeira de rodas, também como forma de proteção e numa fase em que, confirma o centenário, “os ossos já não são o que eram”. “Começou a contar os dias quando fez 99 anos. 99 anos e um dia, 99 anos e dois dias”, graceja Jenifer Torres.
Uma vida na “lavoura”, de que tem saudades
Quando se pergunta a Mário Sousa qual foi a sua profissão, a resposta sai quase que de imediato. “Trabalhei toda a vida na lavoura, na terra; foi sempre esse o meu modo de vida”, diz, confrontando o olhar. Deixa escapar que ainda gostava de poder trabalhar a sua terra, enquanto vai soltando lembranças avulsas: “Gostava ainda de estar em casa a cavar a terra”. No baú dessas lembranças encontra a parte relacionada com o gado. “Tinha vacas: vendia o leite; e tinha bois a trabalhar, a lavrar a terra. Vendia a carne a retalhante e tinha cartão para vender leite; pagava um selo todos os anos para poder vender o leite”, disse ao nosso jornal.
Recorda também o “milho em greiro” que tinha. “Cheguei a tirar 30 carros de milho, cada um com quarenta arrobas”, contextualiza. Sem instrução escolar, o senhor Mário não sabe ler nem escrever, mas as contas continuam a não falhar. “Pagava 12 carros ao senhorio por ano”, atira com sorrisos, acrescentando que “ganhava muito dinheiro na poda das vides”.
“Anda sempre bem-disposto”
Jenifer Torres vai puxando o fio da conversa. Terapeuta no Lar de Sande São Clemente, ajuda na interação com o utente. “Anda sempre bem-disposto e gosta de muita atenção e de muito carinho”, refere. Pergunta a Mário Sousa pela família. “Diga-me lá os nomes dos seus filhos”, questiona enquanto ajeita a cadeira de rodas. Lentamente, vai soltando os nomes: “Custódio, António, José, Manuel, Joaquim e Fernando. Dois são gémeos”, pontua, deixando antever mais uma história na manga. “Um dos gémeos nasceu só com um quilo e meio”, exprime, enquanto por gestos indica que era muito pequeno e franzino. “Foi difícil de o vingar, mas deu um homem duro”, termina.
Sem necessitar de cuidados especiais ou de assistência diferenciada, Mário Sousa permanece de boa saúde, e a medicação que toma é aquela que é normal para a idade. Ainda está rijo, como gosta de dizer. No passado dia 10 de setembro, um domingo, foi dia de festa na Estrutura Residencial para Pessoas Idosas, com a presença de familiares e amigos a cantarem os parabéns ao senhor Mário Sousa, ajudando-o a soprar as velas. Despede-se do Reflexo com um cumprimento: “Que chegue pelo menos à minha idade”, faz votos com um sorriso de quem está ciente da faceta.