Casa da Seara: porta aberta à comunidade com o selo dos Felgueiras
A produção agrícola é agora residual, mas os irmãos Manuel e Luís ainda se lembram do tempo em que se servia vinho e leite a partir daquela casa do século XVIII, em que persistem o varandim e o alpendre voltados para o portão ou a fachada nobre voltada para o jardim. Foi casa de férias e residência paroquial até um dos ramos da família Felgueiras ali se fixar nos anos 30 do século XX. A capela encostou-se depois àquela casa que viu nascer o padre João Felgueiras e recebeu Mário Soares, hoje cada vez mais inserida na área urbana das Taipas.
No traçado estreito e sinuoso da rua Maria Alcide Felgueiras, entre a GNR e o cemitério da vila de Caldas das Taipas, ergue-se um portão resistente à voragem do tempo. Quando se abre, o panorama é o de um edifício senhorial com varandim assente sobre quatro pilares quadrangulares e um alpendre; à direita de quem entra sobressai uma capela do século XX, à esquerda uma fachada nobre voltada para um jardim de buchos.
A propriedade daquele conjunto maioritariamente do século XVIII é da família Felgueiras. “Há várias paredes em tabique, algo que surgiu depois do terramoto de 1755. Pelo menos é da segunda metade do século”, precisa Manuel Felgueiras, ali nascido, criado e residente.
Aquela casa emoldura o quotidiano de Manuel, assim como o fez para os seus pais e tios, mas a experiência das gerações anteriores foi outra: a Seara era uma “casa de férias ou de fins de semana” enquanto o dia a dia dos Felgueiras se cumpria noutros lugares. Secretário das Cortes Constituintes, que elaboraram a primeira Constituição da história portuguesa, datada de 1822, e ainda Procurador-Geral da Coroa e conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça a partir de 1833, João Baptista Felgueiras passou por lá enquanto residia na Casa das Hortas, em Guimarães, nos locais onde trabalhou como corregedor ou em Lisboa, onde morreu em 1848.
Aquele lugar serviu igualmente de residência paroquial na era anterior à atual igreja paroquial, inaugurada a 11 de abril de 1915; aliás, a família Felgueiras esteve sempre ligada à Igreja Católica, como aconteceu na geração anterior à de Manuel: quatro irmãs do seu pai, António, tornaram-se freiras e dois irmãos padres. Eram eles José Maria Felgueiras, missionário da Congregação do Espírito Santo, e João Felgueiras, há mais de meio século em Timor. O missionário jesuíta foi aliás o único dessa geração a nascer na Seara, em 1921, quando a família ainda circulava por outros lugares.
A tia Maria Alcide consolidou esse elo ao ser catequista, ministra da comunhão e voluntária no acompanhamento de doentes e idosos. E a visita pascal, quando decorria de manhã e de tarde, também. “Até há uns anos, era da praxe a visita pascal, com as diversas cruzes e compassos, terminar aqui. Daqui seguia uma procissão até à igreja. Lembro-me disso desde miúdo”, recorda o irmão de Manuel, Luís Felgueiras, que também ali cresceu.
A transposição da capela do interior da casa para um novo edifício a rematar um dos cantos da casa, concluído em 1964, também atesta esse pendor religioso; quando se cruza a soleira do templo, sobressaem um retábulo de cores e ícones variados e dois vitrais coloridos à direita. “Faltava um remate. Aquele canto não estava bem cuidado. Estava ali uma parede tosca e o nosso pai sempre teve esse plano de construir essa capela”, descreve Luís.
Dos doentes em busca de auxílio ao Presidente da República
Autor de uma pequena biografia de João Baptista Felgueiras para uma das edições da Revista do Ministério Público, em 2021, Luís Felgueiras assume nunca ter encontrado documentos com as origens exatas da Casa da Seara, embora o portal Hereditas, da Câmara Municipal de Guimarães, sugira que aquela propriedade emergiu do desmembramento de casais ali existentes, sendo um desses terrenos desmembrados o da Seara.
Ali nascido, Luís Felgueiras recorda-se, contudo, do vinho e do leite servidos à população, da agricultura tradicional na quinta, hoje reduzida a “uma pequena horta para o consumo de casa” e dos lagares. Mas a memória da casa também retém pessoas, nomeadamente aquelas que ali pediam auxílio, ao saberem que uma das Felgueiras da Seara era uma das irmãs franciscanas que geria uma ala do então hospital D. Maria Pia, especializado em pediatria, no Porto. “Não havia semana nenhuma em que não viesse aqui alguém com uma criança pedir socorro. Vinha muita gente das Taipas e arredores”, descreve Manuel Felgueiras, a propósito de episódios que remontam ao pré-25 de Abril.
Aquela casa setecentista, mobilada a madeira vetusta, exibe alguns retratos: um deles é o de Mariano Felgueiras, presidente da Câmara Municipal de Guimarães na maior parte da 1.ª República, visita assídua à Seara na fase final da sua vida de 91 anos. Foi precisamente esse o motivo para Mário Soares a visitar aquela casa em 1986, aquando da Presidência Aberta em Guimarães. “Ele sabia que a viúva do Mariano estava cá e veio numa visita meio particular, meio oficial. Escreveu umas palavrinhas num livro de honra que o meu pai tinha”, descreve Manuel.
“Antigamente dizíamos “Vamos às Taipas””
Quando se olha em direção ao centro da vila, vê-se um cenário urbano, bem diferente daquele com que Manuel e Luís cresceram. “Antigamente, dizíamos “vamos às Taipas” como se fôssemos a outra terra. Havia uma distância ao centro. A casa mais próxima daqui era a dos bombeiros antigos, onde está uma bomba de gasolina”, realça Manuel.
Embora sem classificação, os irmãos Felgueiras consideram que a Casa da Seara tem valor patrimonial “pelo conjunto e pelo enquadramento”. E não temem os edifícios futuros até porque há “uma faixa de proteção paisagística” no PDM em vigor, embora esteja a ser revisto. “Vão fazer loteamento aqui perto. Aqui por trás já fizeram coisas. Com algum espaço à volta, vai ficar uma casa enquadrada numa zona urbana”, constata.