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Pior a emenda que o soneto!

Teresa Portal
Opinião \ quinta-feira, maio 12, 2022
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Que fazer quando o trabalho não rende? Pôr-se a dormir? Que maravilha! E se sofrer de insónias? Fica a olhar para as moscas? Impossível.

O nervoso miudinho começa a atacar e é pior a emenda que o soneto! A propósito, sabe como surgiu esta expressão tão castiça? Foi Bocage que a criou. Um pretenso poeta pediu-lhe que lhe lesse um soneto que fizera e o corrigisse. O poema era tão mau que Bocage não fez absolutamente nada, já que qualquer correção apenas o pioraria. Não havia emenda que lhe servisse. A expressão correu mundo e tornou-se numa espécie de ditado popular. É que nem sempre um jeitinho resolve…

Quando a vontade para fazer seja o que for anda por paragens desconhecidas é difícil dar a volta por cima, por baixo ou seja por que lado for. Não há emenda que lhe valha. Às vezes, respirar fundo e fechar os olhos por um momento, resolve o problema e as ideias começam a fluir. Outras vezes, dar um passeio pelo parque, tomar contacto com a natureza, respirar o odor da terra molhada, da relva acabada de cortar e das flores dos canteiros, ouvir o chilrear da passarada, as vozes e os risos da catraiada têm o efeito mágico de nos levar até ao País do Faz de Conta e do Era Uma Vez muito de mansinho, quase sem darmos por ela.

E a história impõe-se, pé ante pé, hesitante, tímida, sem coragem para avançar, sem bem saber quem é o quê, qual o local e o tempo de ocorrência. Depois, as palavras começam a avançar, as frases exigem ser escritas e tudo parece ordenado por uma vontade superior. E ei-la que surge singela e infantil, inconsciente e adolescente, severa e adulta de acordo com o autor que a escreve e o público a quem se destina.

Por vezes, aparece um texto sem qualquer tipologia específica, capaz de servir um ou outro senhor: a crónica sarcástica e escarninha, um relato pessoal e intimista, uma carta para um amigo imaginário, um artigo de opinião, um conto, uma poesia, o início de uma novela ou romance…

Uns utilizam uma linguagem que permite o seu acesso a todo o leitor, o que não significa uma escrita menor, sem valor; outros vêm a luz com uma forma tão intrincada e obscura que poucos são os felizardos que têm permissão para aceder ao seu significado. E são esses que levam os críticos de cantiga. Se não estou a entender nada do que leio, então o livro tem seguramente de ser muito bom. Eu é que sou estúpido/a. E toca a dar-lhes uma avaliação do topo da tabela.

À conta deste facto ressurge incessantemente a discussão sobre o que é e não é literatura. Quem pode ou não dar esse estatuto? Muitos dos nossos escritores só tiveram valor depois de mortos, recusando-se-lhes a maestria em vida. Veja-se Camilo Castelo Branco!

Não posso esquecer aquela reunião de professores numa apresentação de manuais, onde um dos nossos grandes teorizadores e investigadores portugueses (professor universitário, poeta e escritor) afirmou perentoriamente que, na literatura portuguesa, só tinha havido um grande poeta “Camões” e que todos os outros não passavam de poetastros. Bem, só teve desculpa por se estar a definir a ele próprio também.

Um best-seller que vende milhares de exemplares (às vezes milhões!), que é traduzido numa série de línguas, que é adaptado ao cinema… não é uma obra de arte? Não foi o leitor que lhe deu o valor? Em que é que um crítico literário é superior ao comum dos mortais? Na cultura? E que é isso de ser culto?

Como é que um jovem (atenção que não tenha nada contra a juventude!) pode decidir se uma obra merece ser publicada ou não? É que muitas das editoras têm jovens na avaliação dos originais. Segue um formulário? Nasceu com a sabedoria?

E como é que no PNL há tanta obra que não vale nada e quantas vezes de um/a autor/a que está a começar a publicar? Como é que se chega a esse pedestal? A velha cunha portuguesa? O conhecimento de quem faz parte do grupo que decide? Um bilhete premiado da lotaria?

E não vale a pena dizer mais nada. Está tudo dito…