Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo
Dentro de dias iremos votar. A minha filha tem dezanove anos e será a terceira vez que repetiremos esse caminho juntas. Ela regressa à antiga escola primária e eu, a rostos que a memória demora a reenquadrar.
Vamos caladas com o sol a bater na calçada. Ela nunca pergunta em quem voto. Eu também não. Mas vou sempre a matutar numa boa forma de o fazer, sem que pareça que quero dirigir-lhe a mão e sem trair o princípio de liberdade que tanto evoco. Ela não parece sentir a mesma inquietação, conhece bem as minhas vontades, mas eu não conheço bem as dela. Ela é contida, habita o silêncio com naturalidade. Não incomoda ninguém se não for incomodada. Só dá feedback negativo ou mudo - faz lembrar a minha mãe e talvez todas as mães da minha geração: a ternura foi-lhes roubada pela prudência.
É tudo muito rápido. O cumprimento, o papel, a caneta, o traço. E, no entanto, há ali uma cadência, um rumor de narrativa, um início de enredo coletivo. Entre a caneta e o silêncio vejo-me numa narrativa literária. Vejo uma afinidade entre o boletim de voto e a página escrita de um livro, ambos suportes frágeis onde projetamos um desejo de salvação. As eleições, como os livros, são rituais de fé: cada um escolhe uma história na esperança de que ela o salve de outras piores.
A política e a literatura coexistem desde que o ser humano aprendeu a narrar o mundo. Elas partilham o mesmo território, o das palavras. A diferença é que a política usa as palavras para organizar a sociedade e a literatura para a compreender. Talvez a política construa estradas, mas é a literatura que ensina o caminho. Onde a política oferece certezas, a literatura semeia dúvidas. Uma oculta, a outra revela. Quando a linguagem se degrada, a política transforma-se em propaganda e a literatura torna-se a última defesa da verdade, ela atua onde a política raramente chega: na consciência.
Quem leu Memorial do Convento lembrará Blimunda, essa personagem de olhar insólito, capaz de ver as vontades escondidas nos corpos humanos. Também a literatura nos dá esse dom: o de ver por dentro. Ela oferece-nos uma competência para ver o mundo de diferentes perspetivas, compreender a causa dessas diferenças, dialogar com elas e aceitá-las como manifestações legítimas da pluralidade humana. Afinal, como diz a canção, “muito mais é o que nos une que aquilo que nos separa”. E é essa lucidez que nos permite responder à vida com humanidade e nos ensina a reconhecer o lugar que nos cabe no mundo.
Mas há um perigo à espreita – quando deixamos de ler, perdemos o olhar. Um povo que lê é um povo que pensa e um povo que pensa é menos enganado. Quando uma mente lê, o mundo abranda e esse hiato é, talvez, o único lugar onde a liberdade ainda se sustenta. Ler é o gesto mais simples e mais subversivo que podemos praticar.
E, no entanto, quase metade da população portuguesa, diz a OCDE, não consegue interpretar corretamente um texto simples. Isso mesmo. Um texto simples. Como uma notícia, uma fatura, uma instrução. Estou certa de que a iliteracia não é um problema educativo é um problema ontológico. Ler é o princípio de tudo - “No princípio era o verbo”- É o princípio da liberdade. A liberdade de pensar com cabeça própria, de fazer escolhas lúcidas, de dizer não à verdade negociável, ao cinismo, à manipulação, aos argumentos de bagatela, às notícias falsas, à propaganda falaciosa. É também o princípio da relação. Porque quem não lê, não reconhece o outro. Não entende o ponto de vista alheio, não tem misericórdia pelo seu semelhante. A literacia é o alicerce da alteridade. Só compreende o outro quem é capaz de se imaginar fora do seu próprio lugar.
A iliteracia é uma falha civilizacional, e quem não lê não participa, não vota informado, não exige, não fiscaliza, não propõe e não sonha. Cuidado, a ignorância não é nada neutra, é politicamente funcional. Esta dificuldade em ler é também causa e consequência de um tempo cansado, dos dias apressados, saturados de estímulos no fluxo contínuo do imediato. A leitura atenta exige tempo, silêncio, concentração e vontade. E não há silêncio possível num mundo onde tudo grita. O resultado está à vista: desinformação viral, polarização emocional, diminuição do arco de atenção, fugacidade e frivolidade tecnológicas.
Os movimentos de cultura partilhada podem ajudar. Levar livros onde não há, fazer da leitura um gesto comunitário, ganhar conversa. E é talvez por isso que vos escrevo, porque a comunidade é uma possibilidade de mundo. Mas só o será se os seus habitantes tiverem vontade de participar mais ativamente na vida cívica. Uma comunidade é viva quando é pensante e é pensante quando lê, quando conversa, quando questiona, quando partilha, quando faz da palavra um lugar de abrigo. É urgente regressar ao princípio, às redes analógicas. Para, talvez, como diria Torga, criarmos o mundo à nossa medida.
A literatura não faz política, é certo, mas guarda a sua dimensão humana e lembra-nos que a democracia, como a boa literatura, não se escreve sozinha. Exige leitores atentos, críticos, dispostos a virar a página quando é preciso, mas também a reler quando se esquece o que foi escrito.
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Isto é apenas uma dinâmica artística que procura reunir o valor intelectual e o valor moral. Se a arte promete aproximação e humanização, será pela arte que caminharemos. Você faz parte do quórum. Parabéns, feliz contemplado.
Eduarda Ribeiro