Os Drs e as Dras d’autre époque e desta
Ao contrário dos nossos irmãos brasileiros, em que doutores eram todos os endinheirados e os que tinham poder e nada tinha a ver com cultura, em Portugal, os Drs eram os licenciados que, há um bom par de anos, se contavam pelos dedos. Poucos estudavam e ainda menos os que se licenciavam.
A partir dos anos 60, com a abertura mais ampla do ensino às mulheres, as licenciaturas começaram a aumentar exponencialmente com o género feminino a ultrapassar de longe o masculino, o que já acontecia em muitas faculdades onde suplantavam em número os homens, exceção para as engenharias, não por serem “burras” nem por serem frágeis (se fossem os homens a ter os filhos, há muito que a raça humana se teria extinguido!), mas talvez porque os assuntos fossem demasiado “exatos”, “objetivos”, “diretos”, “sujos”, “desinteressantes” (kkkkk).
Uma mulher voa muito mais do que um homem, arranja soluções para um problema enquanto faz outra tarefa completamente diferente, presta atenção a vários assuntos/ temas/ trabalhos em simultâneo… faz autênticos milagres em casa (cozinha, lava, vê os TPC dos filhos, ouve a leitura, acompanha a pesquisa, põe a mesa…)… já me entenderam… a mulher é MULTITASK. O homem tem de fazer uma coisa de cada vez ou sai tudo errado! Haverá as exceções, como em tudo.
Mas falava eu dos Drs e das Dras. Eu sou das poucas que ainda recebo esse tratamento por parte de alguns (poucos!) que me conhecem desde que para aqui vai fazer quarenta e um anos. Tenho uma Licenciatura em Filologia Germânica de cinco anos, seguida de um estágio profissional de dois, o que totaliza sete anos. O próprio ME chegou a pensar equiparar estas licenciaturas aos mestrados e só não o fez por questões financeiras, como seria de esperar: o reposicionamento na carreira acarretaria mudança de escalão e alteração de ordenados.
Hoje com cinco anos (estágio incluído), os jovens são mestres, infelizmente em pouquíssima coisa ou em coisa nenhuma, perdoem o sarcasmo. A preparação é uma miséria, refiro-me aos professores que acompanhei de perto, e a culpa não é dos atuais mestres ou licenciados. É verdade que a Licenciatura acabou na maior parte dos cursos (e os que a têm são três anos) para os obrigar a fazer o mestrado que vai dar os cinco.
Outro dia, uma pessoa da velha guarda tratou-me por Dra e houve quem se risse. Esclareci a pessoa sobre o porquê desse tratamento que nunca exigi, mas que me era dado por deferência e respeito.
As pessoas acham que só os médicos e os advogados é que são Drs. Porquê? Santa ignorância. Têm uma licenciatura como eu, como os engenheiros e os arquitetos. Então que os chamem médicos, advogados, como aos outros chamam professores, engenheiros, arquitetos…
Sem o saberem, as pessoas estão a atribuir-me um grau superior ao que tenho, porque professores eram os catedráticos das universidades - esses eram e são os professores doutores (por extenso), referindo-se-lhes apenas por professores. Veja-se o nosso Presidente da República, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa, que todos tratam por Professor Marcelo.
Hoje, a distância acabou. Em 1º lugar porque ninguém trata ninguém por mestre (isso faz relembrar o passado mestre-escola), em 2º lugar porque a maioria dos cursos não tem licenciatura e em 3ºlugar porque os médicos e os advogados continuam a ser os Drs, talvez porque não soe bem dizer médico Soares, advogado Sousa, mas já soa bem dizer professor Souto, arquiteto Silva e engenheiro Santos, com o Sr. ou a Sra antes, conforme a educação de cada um.
E isto tudo para esclarecer quem continua a não entender ou não quer (parece-me mais ser esta a vertente) que eu e mais uns tantos com licenciaturas de cinco ou quatro anos e com estágios exigentes e esgotantes, possamos ser tratados por Drs. Faz “comichão” a muita gente dar esse tratamento. A mim não me faz nenhuma porque vai fazer quarenta e um anos que sou a Terezinha ou a Dª. Terezinha para o pessoal da vila. Nas Taipas e arredores, as –inhas são ou eram as pessoas que mereciam um tratamento especial. E não são muitas.
Houve situações engraçadas a propósito do tratamento na minha carreira: no Liceu Nacional de Guimarães, ainda frequentava o 5º ano da faculdade, já era a Drª Teresa Portal; depois passei para professora Teresa Portal em Fafe onde só as que viviam na vila casadas com os engenheiros, os advogados, os médicos, os grandes industriais… eram as Dras. Quando vim para as Taipas, os homens eram os professores e nós éramos as senhoras donas até que uma colega do diretivo (que nem licenciada era) obrigou todos os funcionários a tratarem-nos por Drs e Dras, mas não pegou e pegou na Escola Secundária com os mesmíssimos cursos. Ficamos todos a ser professores, com exceção da direção (punhamos o nome atual, onde estive 25 anos) que eram Drs para alguns funcionários e os outros professores. E não valia de nada protestar.
E há 45 anos, desde que abri conta na CGD (era professora no Liceu Nacional de Guimarães) que fiquei Dra, tanto nos cheques como nos cartões, sem nunca ter pedido tal tratamento, mas por acharem que a ele tinha direito. Tinham assim instituído e ponto final.
Pois bem, a Dra Teresa Portal deseja-vos saúde e que a Covid-19 seja vencida e a professora Teresa Portal reitera os votos da sua sósia. Ahahah!
Que a boa disposição nunca desapareça da face da terra para nos fazer aceitar todos estes contratempos a que temos estado sujeitos.
Devemos exigir e sempre que o tratamento respeitoso exista. “Quem é a tua professora?” perguntei. “É a Teresa Silva” respondeu o aluno. “Andou contigo na escola?” “Quem?” “Essa Teresa Silva?”. “Não, é a professora de CN” “Ah! Então é a professora Teresa Silva.” “Isso!”
Diálogos como este houve muitos. E os pais com o você acima e o você abaixo. Custa-lhes a dizer o professor/ a professora. Eu a tratá-los por Sr e Sra e eles com o você.
E mais uma vez a falta de educação também é veiculada pela comunicação social! “Marcelo fala aos Portugueses!” Que Marcelo? “O presidente da república, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa fala aos portugueses!” E já não falo das excelências. “Sua Excelência, o professor doutor Marcelo Rebelo…”
Valerá a pena bater no ceguinho?