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O desencanto de um arqueólogo na reta final do Estado Novo

Gonçalo Cruz
Opinião \ quinta-feira, maio 03, 2018
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Mário Cardozo recorreu às convicções e ao ímpeto que caracterizaram o início do regime para preservar património arqueológico que antes se encontrava ao abandono.

O Cor. Mário Cardozo na Citânia de Briteiros, em 1954 (Arquivo da SMS).

A Mário Cardozo se deve o retomar dos trabalhos arqueológicos na Citânia de Briteiros, notavelmente a partir de 1930, no que justamente se considerou uma forma de honrar e dar continuidade aos trabalhos do arqueólogo oitocentista Martins Sarmento. Os trabalhos de Cardozo, sobejamente conhecidos, e ainda mencionados por várias pessoas de Briteiros que com ele conviveram, consistiam em campanhas anuais financiadas pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN). Recorreu-se assim a um paradigma que caracterizou os primeiros anos do Estado Novo, a conservação e o restauro de Monumentos Nacionais, revestidos de uma nova leitura, nacionalista, procurando fundamentar e elevar os valores da "História Pátria".

Independentemente da identificação de Mário Cardozo com os valores do Estado Novo, que será sempre relativa, a verdade é que o arqueólogo recorreu às convicções e ao ímpeto que caracterizaram o início do regime para preservar património arqueológico que antes se encontrava ao abandono. Essa preservação, mormente as evidentes carências metodológicas, foi determinante no caso da Citânia de Briteiros.

No entanto, o desfecho da Segunda Guerra Mundial, a emigração, a Guerra Colonial e a crescente contestação ao Estado Novo, refletiu-se na preservação do Património, como se refletiu em muitas outras áreas. Na década de 1960, o Estado deixou de apoiar o estudo e conservação da Citânia, tendo sido realizada a última campanha subvencionada em 1968, após uma outra, realizada em 1964.

Em 1970, Cardozo verificava, e fazia notar em ata da Direção da Sociedade Martins Sarmento, o estado de progressiva degradação da Citânia e do Castro de Sabroso, respondendo negativamente, em Novembro desse ano, a uma proposta da Câmara Municipal para realização de um "campo de trabalho" na Citânia, dizendo que não realizava trabalhos arqueológicos porque a DGEMN já não os financiava.

Mais tarde, em 1972, ausente das reuniões da Direção da Sociedade, por doença, mas sendo ainda Presidente da Direção, Cardozo critica abertamente o Governo, publicando um trabalho na Revista de Guimarães, a propósito de um conjunto de investimentos então realizados no Norte de Espanha sob os auspícios da Dirección General de Bellas Artes, congénere espanhola da portuguesa DGEMN (com a diferença de que ainda existe). Nestes investimentos se contava o restauro da monumental muralha romana de Lugo, a intervenção na "Torre de Hércules", na Corunha, na Igreja de Santa Eulália de Bóveda, no Mosteiro de Celanova, na Catedral de Tuy, no monumental Castro de Santa Tegra, entre outros. A este respeito comenta Cardozo:

"Infelizmente, na «pequena casa lusitana» ainda há muitas pessoas, até de certo modo cultas, que consideram dinheiro mal gasto o aplicado à conservação e reparações de monumentos do Passado (...). Infelizmente, os estudos arqueológicos (...) são tidos, por alguns, como simples distracção amena; e, quem a esses estudos se dedica, é considerado como indivíduo dado a velharias inúteis..." [Mário Cardozo, Revista de Guimarães, vol. 82º, p. 239, 1972]

O desencanto de um homem de ciência com um regime em fase terminal.