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Crónica do peninsularismo

António Bárbolo
Opinião \ sexta-feira, dezembro 22, 2017
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Com o advento das democracias e a subsequente integração na então Comunidade Económica Europeia, as palavras e os sonhos dos iberistas parecem ter caído no olvido.

"Na história dos rios nunca acontecera um tal caso, estar passando a água em seu eterno passar e de repente não passa mais, como torneira que bruscamente tivesse sido fechada, por exemplo, alguém está a lavar as mãos numa bacia, retira a válvula do fundo, fechou a torneira, a água escoa-se, desce, desaparece, o que ainda ficou na concha esmaltada em pouco tempo se evaporará".
José Saramago, A jangada de pedra

Neste 1.º de Dezembro que, como se sabe, é o único dia do ano em que se conjuga(va) o verbo ”defenestrar”, ocorre-me ressuscitar uma velha questão, o iberismo.

O tema começou a ser discutido em meados do século XIX, mas foi evoluindo, adaptando-se e encontrando ramificações conforme as transformações político-sociais ocorridas em Portugal e Espanha. No início, recorria-se ao iberismo para defender a união ibérica, ou a integração das nações peninsulares num espaço territorial, político e económico mais vasto. Mas, a partir das últimas décadas do século XIX surgiram novas interpretações com autores como Oliveira Martins, Miguel de Unamuno, António Sardinha, Fidelino de Figueiredo ou Fernando Pessoa a socorrerem-se de termos como hispanismo ou peninsularismo para defender iberismos culturais e espirituais que respeitassem as diferenças de cada país. Também as crises coloniais finisseculares − o Ultimatum, de 1890, em Portugal, e o Desastre, de 1898, em Espanha − contribuíram para dotar o iberismo de novos sentidos. Assim nasceram expressões como hispano-americanismo ou pan-hispanismo que designavam projectos culturais e políticos envolvendo os países ibéricos e americanos, de língua portuguesa e espanhola, numa comunidade cujo princípio seria a partilha civilizacional.

No século XX, as ditaduras ibéricas, com o seu cortejo de nacionalismos, fundamentaram a sua construção identitária contra os eternos vizinhos. Ainda assim o iberismo continuou a ter os seus seguidores, ainda que afastando-se definitivamente do sonho de integração num espaço político e económico comum, e passando a centrar-se num ideário cultural, integrador das diferenças de cada nação. É esta uma das heranças da “Hespanha” de Oliveira Martins, cujos alicerces são o génio, a religiosidade, o misticismo e o heroísmo ibéricos, mas também de Ángel Ganivet e do seu Idearium Español. Natália Correia proclama que “somos todos hispanos”, da mesma sorte, acrescenta, que “Camilo escrevendo no “Amor de Perdição” a novela mais profunda e intensa da paixão fúnebre espanhola e Unamuno enamorado desta pátria dos amores tristes e dos grandes naufrágios que lhe inspira o sentimento trágico da vida”. Do mesmo modo, Aldolfo Correia da Rocha abandona o seu nome de baptismo e adopta o de Miguel, para assim proclamar e reclamar a sua irmandade com outros miguéis, não “de Vasconcelos”, mas “de Cervantes” e “de Unamuno”.

Com o advento das democracias e a subsequente integração na então Comunidade Económica Europeia, as palavras e os sonhos dos iberistas parecem ter caído no olvido. É possível que assim seja. Faltam certamente grandes pensadores, capazes de dar continuidade às reflexões iniciadas em finais do século XIX.

Mas, recentemente, do silêncio onde o iberismo jazia, ergueu-se uma voz tonitruante, a de José Saramago, defendendo um iberismo à século XIX, uma integração política que o Nobel da literatura via como algo viável, profético e, em certa medida, inelutável. Em alturas de crise, como aconteceu com a chamada questão catalã e a falta de água, emergem de novo as velhas ideias, lembrando que um ideário é muito difícil de enterrar.

O catalanismo, nasceu, tal como o iberismo, em finais do século XIX, com figuras como Prat de la Riba e Francesc Cambó a quererem dotar a Catalunha de maior autonomia política. A Lliga Regionalista , por eles criada, batia-se pela formação de uma federação, que integrasse todas as nacionalidades ibéricas, de que Portugal também faria parte. A seca extrema, que se faz sentir um pouco por toda a Península, trouxe para as primeiras páginas a questão dos rios e da partilha da água, mas também da vivência e da convivência no espaço comum peninsular, secularmente marcado por aproximações e por confrontos.

Diz-nos a etimologia que uma península é uma “quase ilha”, uma vez que a forma latina “paeninsula”, que lhe deu origem, está constituída pelo advérbio “paene”, que significa “quase”, e a forma “insula”, que encontramos em palavras como “insular” e “insularidade”, e também na forma “penumbra” que, como facilmente se conclui, significa “quase sombra” ou “quase escuridão”.

À semelhança de tantas outras histórias que a literatura e a ficção se encarregaram de registar, também os habitantes da ibéria vivem numa “quase ilha”. Tal como na metáfora saramaguiana da “jangada de pedra”, em que os dois países se desprendem do continente europeu e começam a errar pelos oceanos, estamos condenados a viver juntos.

Na visão revolucionária de Saramago, essa viagem é uma solução para o futuro, que se concretiza na configuração mítica de um novo mundo. Em 1 de dezembro de 1640 Miguel de Vasconcelos foi morto e defenestrado pela janela do Paço Real. Passados quase quatrocentos anos, é tempo de ir esquecendo velhas rivalidades e de ir pensando na melhor maneira de partilhar a quase-ilha comum.

Miranda do Douro, 1 de dezembro de 2017