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Crónica da Guerra

António Bárbolo
Opinião \ terça-feira, julho 11, 2017
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As causas, os problemas, as estratégias, os diagnósticos, a área ardida, as tragédias humanas, as eventuais soluções, tudo me parece exactamente igual.

“A guerra não é um instinto, mas sim uma invenção. Os animais desconhecem-na e é pura instituição humana, como a ciência ou a administração”.

Ortega y Gasset, A rebelião das massas

Pensei em não escrever sobre este assunto. Afinal já lhe dediquei uma crónica neste mesmo jornal, em Outubro de 2014. Tem como título "Crónica de uma país a arder" e ainda está online para quem a quiser consultar.

Mas desta vez os contornos da tragédia são diferentes. Mais pungentes e inadiáveis. Convocam-nos a reflectir, uma vez mais, sobre esta fatalidade que, periodicamente, se vem arrastando sobre nós. Não sou especialista em matéria de fogos florestais. Como qualquer cidadão, procuro apenas estar informado e ter uma opinião sólida e sustentada sobre o mundo que nos rodeia e sobre os assuntos que nos interessam. Por isso, não sei acrescentar mais nada ao que escrevi na dita crónica de 2014. As causas, os problemas, as estratégias, os diagnósticos, a área ardida, as tragédias humanas, as eventuais soluções, tudo me parece exactamente igual.

Mas há uma grande diferença que vejo emergir por entre a fumaça que se levanta, não do fogo, que é sempre negra e quase sempre trágica, mas a partir dos discursos que se constroem na base das labaredas. E é neste discurso colectivo que eu vejo despontar uma lógica de guerra, que não se coaduna com a sensatez, a ciência e o pacifismo que estas situações merecem.

Antigamente os fogos, quando os havia, porque o melhor é sempre evitá-los, apagavam-se; agora combatem-se.

É neste combate que se fala sistematicamente de “ataques”, como se tal fosse a forma normal de extinguir os ditos fogos. Depois o discurso sobe de tom e entram em acção as “brigadas” que, segundo as “frentes de combate” existentes, podem ser “mobilizadas” com recursos a diferentes meios, sejam eles aéreos ou terrestres. Estes são constituídos pelos “veículos” (de combate, entenda-se), que podem ser aviões e helicópteros, preparados para o efeito, e judiciosamente agora chamados de “helibombardeiros”.

É isto e muito mais que se ouve nos relatos dos profissionais, enquanto se deslocam para o “teatro de operações” onde os “operacionais” e as “brigadas” fazem os ditos ataques.

É perfeitamente lógico e aceitável que haja uma linguagem técnico-científica, clara e objectiva, sobre qualquer matéria. E esta não é excepção. Porém, este discurso bélico não pode deixar de nos interrogar sobre os efeitos de um eventual instinto de guerra existente em todos os seres humanos. Falo em “eventual” porque a existência desta pulsão é defendida por alguns, mas negada e considerada perigosa por outros. Seja como for, parece aceitável que ela existe e está patente em muitas manifestações sociais.

Este seria o caso, por exemplo, dos desportos violentos, dos jogos electrónicos, nos quais as mortes, as mutilações, a violência, podem ser consideradas como passatempos sublimados. Neste sentido, assistir a alguns espectáculos mais violentos, como o boxe (e tantos outros), poderia ser uma forma de aliviar as frustrações. Ou, como diria Freud, uma maneira que permite às pessoas de funcionar normalmente em formas socialmente admissíveis.

Na sua obra A cidade de Deus Santo Agostinho defende que, em alguns casos, a guerra pode ser aceitável, se for defensiva e unicamente para restabelecer a paz. Os cristãos, prossegue o filósofo da igreja, entendendo aqui cristãos como todos os seres humanos, devem ser pacifistas por princípio filosófico e pessoal.

Não sei se será possível inverter o discurso belicista presente quer nos profissionais quer nos meios de comunicação que nos informam sobre as “frentes” de fogo. Mas sei que todas as guerras se perdem e que nas guerras todos perdemos. E estou igualmente convencido que a única forma de ganhar uma guerra é evitá-la.