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Ao deus Bormânico

Gonçalo Cruz
Opinião \ quinta-feira, março 11, 2021
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Também nesta região se passou de uma sociedade pré-romana, dita "indígena", por vezes apelidada de "castreja", para um contexto de maior inserção cultural e económica num mundo completamente diferente

Ara consagrada a Bormânico, por Médamo, filho de Câmalo, recolhida em Vizela. Fotografia de Eduardo Brito

O fenómeno histórico conhecido como Romanização, entendido como um processo de mudança cultural, implicou a transformação do dia-a-dia das populações. Também nesta região se passou de uma sociedade pré-romana, dita "indígena", por vezes apelidada de "castreja", para um contexto de maior inserção cultural e económica num mundo completamente diferente, "globalizado" diríamos hoje.

Um dos aspetos em que essa mudança progressiva é notória verifica-se nas práticas religiosas, com a adoção de novos deuses, mas não esquecendo divindades que eram adoradas na Idade do Ferro. Assim, a introdução da escrita alfabética, com o latim, proporciona-nos interessantes documentos epigráficos, que respeitam à época romana, entre os finais do século I a. C. e os séculos IV-V d. C., mas também em relação à sociedade anterior. Sim, porque a memória sempre existiu!

Da mesma forma que hoje assinalamos, comemoramos ou lamentamos acontecimentos passados, também um habitante deste trecho do Vale do Ave, chamado Médamo, que terá vivido no século II*, tinha perfeita noção de que, embora vivesse no Império Romano, os seus antepassados não eram romanos, facto visível no seu nome indígena, assim como no nome do seu pai, Câmalo, que habitualmente acompanhava o seu próprio nome ao identificar-se: "Médamo, filho de Câmalo". Mas a sua ascendência cultural é também visível no culto que prestava ao deus Bormânico, também ele entidade proto-histórica, embora divina, a puxar ao "céltico", que é como quem diz, também lhe prestavam culto nas Gálias.

E eis que Médamo, filho de Câmalo, dedica uma ara ao deus Bormânico, votum solvit libens merito, isto é, cumprindo um voto de boa mente, na povoação que é hoje a cidade de Vizela, já terra de águas e banhos na época romana. Muitos séculos depois, em 1893, Martins Sarmento compra a vetusta ara de granito por 4.500 réis e é graças a esse investimento que a peça está hoje no Museu Arqueológico da SMS, em Guimarães.

Diz-nos Sarmento que "O que em todo o caso parece indubitável é que Borvo, ou Bormânico era um deus céltico, cujos benefícios se manifestam nos bulhões da água - facto que condiz perfeitamente com o culto das fontes generalizado na Gália, e do qual também entre nós não faltariam vestígios, se... os procurássemos."**. De facto, esta não é a única dedicação a Bormânico em Vizela, posto que um considerável monólito existente no Museu, com a mesma proveniência, contêm também uma dedicatória ao deus das águas.

Mas, e este Médamo, filho de Câmalo, será o mesmo que assim também se apresenta numa inscrição rupestre da Citânia de Briteiros? Seria um habitante citaniense que foi à Vizela romana cumprir um voto? Quem sabe...

Gonçalo Cruz

 

*Armando Redentor (2011) atribui a manufactura da ara que aqui descrevemos, ao século II d. C.

** Sarmento, 1878, "O Deus Bormânico", Museu Ilustrado, p. 155