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Ainda sobre a "domus" da encosta da Citânia

Gonçalo Cruz
Opinião \ quinta-feira, novembro 08, 2018
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A família que habitou esta construção seguiu já os modelos da arquitetura em voga nos povoados de época romana, que então se construíam um pouco por toda a região.

Estela anepígrafa recolhida na Citânia, no pórtico da casa estudada na campanha de 2018.

Poderá parecer pretensioso apelidar de “domus” uma casa construída num castro num momento em que este perdia já a sua importância regional nos vales do Ave e do Cávado, no início da Era Cristã. Mas como já expusemos anteriormente, a família que habitou esta construção seguiu já os modelos da arquitetura em voga nos povoados de época romana, que então se construíam um pouco por toda a região. Abandonou-se assim a construção circular tipicamente “castreja”, construíram-se compartimentos retangulares em torno de um átrio central e cobriu-se o conjunto com um telhado, feito com tegulae e imbrices, tudo à moda no século I d. C. Separou-se também o espaço de cozinha do espaço de refeição, particularmente para serviço de refeições especiais, com família alargada e convidados, que agora tem lugar num triclinium.

Já na Idade do Ferro parece ter havido um espaço próprio, em cada casa de família, destinado à realização de práticas cultuais, dirigidas quer às divindades protetoras da casa, quer aos antepassados. Parece que, em época castreja, este aspeto incluía a deposição de restos humanos de familiares dentro do espaço doméstico, pelo menos em alguns casos, bem como a deposição de oferendas, quer por motivo da construção da casa, quer para assinalar um evento importante da vida da família. A deposição de cinzas humanas em casa era claramente contrária aos padrões rígidos de um modo de vida tipicamente romano. No entanto, a prática parece ter sido continuada em alguns castros, no que pode ser considerado como um fenómeno de persistência de uma tradição ancestral, que se foi abandonando, porque oficialmente desaconselhada, digamos assim.

Também na casa que estudámos em 2018 existia uma pequena área que podemos considerar como um espaço destinado à ritualidade. Ao fundo do átrio central da casa, do lado oposto ao da porta de entrada, existia uma área coberta, espécie de pórtico, que dava acesso a diferentes compartimentos habitacionais que seriam a zona de maior privacidade: onde se comia e dormia. Neste pequeno espaço coberto foi identificada uma gravura de uma espiral, feita numa das pedras do lajeado, o que revela o recurso a uma simbologia de proteção espiritual claramente pré-romana, revelando a origem local da família. Apercebemo-nos também que uma das pedras do lajeado, nesta zona, foi substituída por uma tegula, das que se usavam na cobertura, que assim tapou o que poderá ter sido uma oferenda, depositada sob o lajeado. Debaixo deste elemento recolheu-se uma considerável quantidade de carvão, cuja análise será determinante para apurar a natureza da deposição, bem como apenas um pequeno fragmento cerâmico.

Também nesta zona foi recolhida uma pequena estela em granito, que foi menosprezada por antigas escavações, talvez porque tenha passado despercebida. É um pequeno bloco granítico, com 35cm de altura, por 21cm de largura, com o formato de uma estela funerária, embora muito mais pequena que o habitual, com um limite semicircular em cima, e dois frisos a ladear o corpo central. Nem uma inscrição, como seria de esperar, nem qualquer decoração, são visíveis nesta peça que, embora fruste, não deixa dúvidas quanto à sua função de assinalar um espaço ritual, obedecendo, agora sim, aos hábitos religiosos romanos.

Testemunha-se assim a confluência que se verificou com o início da romanização, em que uma família local vai adotando novos hábitos e gostos e também novas práticas culturais.