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Uma faca de dois gumes:cutelaria quer prosperar entre incerteza das tarifas

Tiago Dias
Sociedade \ sábado, maio 17, 2025
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A ameaça norte-americana de impor tarifas às importações da União Europeia acarreta uma subida de preços no comércio entre os dois blocos… e nas trocas entre outros atores.

A ameaça norte-americana de impor tarifas às importações da União Europeia acarreta uma subida de preços no comércio entre os dois blocos… e nas trocas entre outros atores. Ainda mais pesadas, as tarifas entre Estados Unidos (EUA) e China acarretam perigos e oportunidades para a cutelaria portuguesa: a indústria chinesa pode-se sentir mais tentada a dominar o mercado europeu, mas a produção europeia pode ganhar quota nos EUA. Apesar da instabilidade geopolítica, há otimismo. As empresas da área de Caldas das Taipas pensam manter ou crescer a faturação, após dois anos de arrefecimento nas exportações.

Entre paletes empilhadas e máquinas calibradas, o corredor central do amplo salão industrial dá acesso às várias etapas da produção de talheres: garfos, colheres, facas, tenazes. Numa caixa, vários pedaços de metal amontoam-se à espera de serem moldados e polidos. Esse é o cenário da Herdmar quando a maioria da força de trabalho já concluiu mais uma jornada diária.

Fundada em 1911, por Manuel Marques, a empresa está habituada a exportar desde a década de 50 do século XX – na altura, já vendia 90% da sua produção para o estrangeiro – e continua a fabricar utensílios com design próprio, mutável ao longo das décadas, por entre as ondas do setor e da economia global. Instalada em Barco, a Herdmar produz cerca de 30 mil peças por dia e tem capacidade para mais.

A projeção para 2025 é a de aumentar o volume de negócios em cerca de 20%, apesar do calmo início de ano nas encomendas, fruto da estagnação do retalho – vendas ao consumidor final. “O nosso plano passa por ações comerciais que nos permitam trazer mais negócio. Queremos olhar para o mercado global, perceber onde estamos e onde podemos crescer”, adianta ao Reflexo o diretor de marketing, Fernando Castro, sem especificar a faturação em 2024.

Otimista, essa perspetiva contraria 2023 e 2024, numa indústria em que o comércio internacional foi de perpétuo sobe-e-desce na última década. Depois do pico de 28,56 milhões de dólares em 2018 (25,27 milhões de euros à cotação de 05 de maio de 2025), as exportações portuguesas de cutelaria caíram para 22,15 milhões em 2020, quando eclodiu a pandemia de covid-19, e dispararam nos dois anos seguintes: atingiram os 28,58 milhões em 2021 e o recorde de 34 milhões em 2022, tempo marcado pela dificuldade em obter matérias-primas.

Nesse ano, a inflação galopante desencadeou a subida abrupta das taxas de juro do Banco Central Europeu – de 0% em 27 de julho de 2022, passou para 4% em 20 de setembro de 2023 –, circunstância que afetou o consumo, assume Fernando Castro. As exportações ressentiram-se, caindo para os 31,53 milhões de dólares (27,9 milhões de euros) em 2023 e para os 27 no ano passado (23,89 milhões de euros), segundo dados a que o Reflexo acedeu.

@herdmar

Com uma produção que se distribui equitativamente pelo retalho e pela restauração e hotelaria – 50% para cada ramo –, a Herdmar pensa no “próximo passo rumo a um crescimento sustentado”, num tempo em que a instabilidade geopolítica se adensa. De regresso à Casa Branca após vencer as Eleições Presidenciais de 2024, Donald Trump prometeu que os Estados Unidos (EUA) iriam aplicar ou reforçar tarifas relativas a produtos importados.

A imposição de tarifas recíprocas de 20% à União Europeia (UE) – 25% para o aço e o alumínio – iria entrar em vigor a 09 de abril, mas a administração norte-americana suspendeu-as temporariamente. A UE respondeu na mesma moeda: as contramedidas de 25% para importações dos EUA foram suspensas entre 14 de abril e 14 de julho, intervalo que vai permitir negociações. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já propôs tarifas zero por zero para bens industriais, por agora rejeitadas por Trump, situação que poderia ser vantajosa para o setor do aço, mesmo numa fase em que os Estados Unidos são o oitavo mercado nas exportações da Herdmar – o ranking é liderado pela Suíça, pelo Canadá e pela Espanha. “Já chegou a ser o nosso terceiro mercado mais importante. Neste momento, não é. Se uma tarifa for aplicada, o preço já está a ser automaticamente inflacionado, mesmo que o produto não seja para os EUA. Isso mexe com o valor do dólar”, explica Fernando Castro, a propósito da medida que paira sobre o comércio global.

 

Impacto das tarifas varia, mas preço sobe sempre

O valor nominal das vendas de cutelaria para os EUA mais do que duplicou entre 2015 e 2022: atingiu então um pico de 2,62 milhões de dólares, antes de retroceder para os dois milhões em 2023 e em 2024. No ano passado, o mercado norte-americano correspondeu a 7,4% das exportações portuguesas, mas o seu peso ascende a 20% no comércio internacional da Cutipol, empresa várias vezes reconhecida pela internacionalização, que vende para cerca de 60 países e que já chegou a ter um volume de negócios de 13,5 milhões de euros, em 2021.

Da receita que provém da maior economia do mundo, 90% respeita a uma cadeia de department stores que, em meados de abril, enviou uma carta para a empresa de Caldas das Taipas, exigindo-lhe que suporte o valor correspondente à tarifa, no caso de ser aplicada. “Não é possível. Ao valor que faturamos, nem 5% poderíamos oferecer de repente. Assimilarmos 10% de desconto é brutal. É um impacto muito grande”, adianta ao Reflexo Davide Ribeiro, diretor comercial da empresa familiar criada em 1963.

O preço acordado com esse cliente depende das quantidades encomendadas, de antemão programadas para cada ano; quanto maior a quantidade pedida, mais o preço diminui – ou “é esmagado”, como se diz na gíria dos negócios. Na resposta ao e-mail, a Cutipol propôs negociações para as duas empresas absorverem a tarifa, dividindo o custo. O responsável detalha ainda que nenhum dos outros clientes norte-americanos, com um peso bem menor nas exportações, mencionou a questão das tarifas.

Embora o Japão seja o principal mercado e as vendas para a UE superem as dos EUA, o diretor comercial admite que seria muito difícil substituir de um momento para o outro o principal cliente norte-americano, caso o perdesse.

“Se perdêssemos o mercado norte-americano, não iríamos para o Mercosul (América do Sul) ou para outros países na Ásia. Não é de um dia para o outro que colocamos um milhão de dólares noutro país. É preciso descobrir e conquistar os clientes”, realça, vincando que o período de prospeção e de negociação com novos clientes pode demorar meses ou anos, até. Diversificar as exportações é prioridade ainda assim, para a Cutipol não ficar “dependente de um, dois ou três mercados”, acrescenta Davide Ribeiro.

A dependência dos EUA é “muito residual” na Cristema, empresa fundada em 1993, que produz entre 80 e 90 mil peças diárias, exportando mais de 70% da produção, e “relativamente baixa” na Serafim Fertuzinhos, produtora de tesouras que encerrou 2024 com 3,5 milhões de dólares de volume de negócios, 65% gerado através de exportações. “Estas políticas agressivas por parte dos EUA não nos afetam diretamente. Isso não significa que não haja retrações nos clientes de outros países que trabalham com os EUA. Para já, ainda não as sentimos”, afirma ao Reflexo o diretor comercial da empresa de Sande São Clemente, Jorge Silva.

A administração norte-americana defende as tarifas para combater o défice comercial do país e estimular a produção interna, mas uma subida de preços decretada politicamente pode gerar um efeito “bola de neve” que conduza à perda do poder de compra. “De imediato, o meu produto não ficou a valer mais 10%, porque é melhor ou porque a matéria-prima subiu. (…) E o que pode acontecer? Ou não é comprado por nenhum dos intervenientes da cadeia de distribuição ou não é comprado porque o consumidor final não absorve a diferença de preço”, ilustra Fernando Castro.

 

O papel da China: ameaça e oportunidade

Se Portugal é o 10.º fornecedor mundial de cutelaria aos EUA, a China é o principal. O gigante asiático é, no entanto, alvo de tarifas norte-americanas bem mais pesadas: Washington elevou as tarifas a produtos chineses até 145%, percentagem que passou a vigorar em 10 de abril, com a resposta a fazer-se sentir de imediato: dois dias depois, Pequim elevou de 84 para 125% as tarifas sobre importações dos EUA. Tal panorama encerra ameaças e oportunidades, crê o diretor de marketing da Herdmar.

Perante as barreiras norte-americanas, as empresas chinesas podem-se sentir tentadas “a invadir” a Europa com produtos que também têm valor no design e que são “impossíveis de combater nos preços”. Para Fernando Castro, é praticamente impossível a indústria europeia competir com a China, onde o setor labora sem obrigatoriedade de certificados sociais e ambientais, “para se cumprir com determinados requisitos de poluição”, sem a exigência de quantidades mínimas nas encomendas e com vários subsídios estatais, tanto para a aquisição de matéria-prima, como para o transporte do produto para o estrangeiro.

Parte dessa produção está a cargo de empresas alemãs e italianas que mantêm os armazéns na Europa. Para o responsável da Herdmar, essa opção pode “acontecer com mais escala” e facilitar a massificação de produtos chineses no continente, hipótese que, a seu ver, requer medidas por parte da UE. “Há muito foco nos serviços, na hi tech, no turismo. A indústria, de alguma forma, está à mercê das decisões individuais de cada empresa. Não há uma resposta coletiva, mas acreditamos que é esse o caminho”, salienta.

A China depara-se, ainda assim, com tarifas muito superiores às da UE, o que pode esbater a vantagem dos seus produtos a nível de preço. Tal cenário pode servir de estímulo para uma renovada procura de clientes norte-americanos pela cutelaria europeia, nomeadamente no que respeita à produção de talheres para outras marcas – essa modalidade, o private label, vale 50% da faturação da Herdmar, com a outra metade a advir da marca própria.

O interesse de um “pequeno negócio” nos EUA é “um enorme negócio” para qualquer empresa portuguesa, face ao tamanho daquele mercado. “Se arranjarmos um ou dois clientes norte-americanos em private label, são umas centenas de milhar ou milhões de peças. Se trouxermos essa procura, estamos a falar até de superar as expetativas para 2025”, salienta Fernando Castro.

Na Cristema, Emanuel Fertuzinhos também vê o mercado norte-americano como uma “oportunidade interessante”, fruto do maior protecionismo dos EUA perante a China do que perante a UE. “Se tivermos uma diferença de 30% nas tarifas entre China e UE, estaremos em condições de vender a par da China. Se isso acontecer, poderá ser muito interessante”, realça Emanuel Fertuzinhos.

@reflexo

 

Diversificar é preciso

A produção continua a rolar na empresa do parque industrial de Vila Nova de Sande, protagonista de um 2024 em contraciclo com o setor; esse foi o melhor ano de sempre para a Cristema, com uma faturação acima dos 11 milhões de dólares que, pelo menos, tenciona manter. “Não prevemos crescer. O objetivo é manter e continuar à procura de novos mercados e clientes”, sublinha Emanuel Fertuzinhos. Mais do que a perda de clientes, a perda de mercados é a principal ameaça ao setor, numa fase em que o consumo está a diminuir na Europa. A empresa lança, por isso, olhares à Ásia – China, Coreia do Sul e Japão, sobretudo.

Na Cutipol, a confiança em melhorias, fruto de “uma boa carteira de encomendas”, coabita com os receios oriundos da instabilidade mundial. A prioridade, vinca Davide Ribeiro, é manter a faturação de 2024, sem esquecer o “bom relacionamento” com os cerca de 100 trabalhadores. “Tivemos um aumento substancial dos salários neste ano. Fazemos isso todos os anos”, ressalva.

O primeiro quadrimestre de 2025 tem sido de “reação dos mercados” e de “mais procura” para a Serafim Fertuzinhos, que projeta um crescimento da faturação para os quatro milhões e espera aprofundar a diversificação dos mercados. “A nossa filosofia sempre foi estar no maior número de mercados possíveis, para não ficarmos dependentes de um mercado, de uma geografia ou de um cliente”, salienta.

Sem “esquecer o investimento todo no chão de fábrica”, com máquinas e postos de trabalho “a alimentar”, a Herdmar está focada em “mais rentabilidade”, o que implica “um controlo de custos rigoroso” na empresa com 97 funcionários, afirma Fernando Castro. Ainda em discussão entre as altas entidades políticas, resta a dúvida se as tarifas vão ser tão desfavoráveis como aparentam ou abrir inesperadamente portas, acrescenta: “Vamos ver o que a senhora Von der Leyen vai negociar com o Trump. Se forem tarifas zero para zero, pode correr bem. Se for assim, a Europa coloca-se para parceiro estratégico dos Estados Unidos. A indústria da cutelaria mas também a têxtil podem tirar partido disso”.

 

Espanha foi principal destino de exportação na última década

O principal mercado da cutelaria portuguesa é Espanha. Ao longo da última década, o país vizinho apareceu sempre na liderança dos destinos de exportação, embora com flutuações no valor faturado; em 2015, Portugal arrecadou cinco milhões de dólares (4,43 milhões de euros) com o mercado espanhol; no ano passado, amealhou 5,87 milhões (5,2 milhões de euros). Pelo meio, o comércio com o vizinho ibérico teve altos – sete milhões em 2016 e o máximo de 7,35 milhões em 2022 – e baixos – 3,56 milhões em 2020 e 4,93 milhões em 2021.

Os anos da pandemia foram, aliás, os únicos em que o peso de Espanha nas exportações lusas foi inferior a 20% − em 2020, foi de 16%, e em 2021, de 17,24%. No polo oposto, 2016 foi o ano em que o impacto daquele país mais se fez sentir; as exportações corresponderam a 28% do total. Espanha é o principal mercado da Serafim Fertuzinhos e da Cristema, pela proximidade. A empresa de Vila Nova de Sande ambiciona mesmo liderar a oferta de cutelaria numa geografia em que está “a crescer muito”.

Nos dados a que o Reflexo acedeu, sobressai também a ascensão repentina da Turquia ao estatuto de segundo principal destino: no ano passado, Portugal arrecadou 3,24 milhões de dólares, valor que equivale praticamente ao triplo do de 2023 (1,1 milhões). Nos anos anteriores, o comércio com o país onde Europa e Ásia se encontram ficara sempre aquém do milhão.

Cenário inverso acontece com o Japão, terceiro principal destino. Os 2,71 milhões de dólares de 2024 traduzem uma descida de 43% face a 2023, ano em que Portugal garantiu um valor recorde de 4,76 milhões no comércio com o país do sol nascente. O arquipélago asiático afirmara-se como o segundo principal destino da cutelaria lusa desde 2017, ano em que as exportações duplicaram dos 912 mil dólares para os 1,83 milhões, impulsionando uma tendência de crescimento abruptamente interrompida no ano passado.

As vendas para França, quarto mercado português, estabilizaram nos 2,5 milhões nos últimos dois anos, após um pico de 3,28 milhões em 2022. Além dos Estados Unidos, quinto destino, a Arábia Saudita, a Coreia do Sul, os Emirados Árabes Unidos, a Alemanha e o Canadá completam o top 10 das exportações lusas. Nesse lote, sobressai, entre 2023 e 2024, o crescimento acentuado das vendas para a Arábia Saudita, de 95 para 820 mil dólares, e as descidas repentinas da Coreia do Sul – 1,7 milhões para 810 mil dólares –, da Alemanha – 1,34 milhões para 696 mil dólares – e do Canadá – 1,08 milhões para 618 mil.

 

[Conteúdo publicado originalmente na edição de Maio 2025 do jornal Reflexo]

foto de capa: @herdmar