Teatro fora de horas que interpela a “tempo inteiro”
O Pequeno Auditório do Centro Cultural Vila Flor (CCVF) encheu-se na noite de 22 de outubro, sábado, para assistir à interpretação de Chronicles of a sick man por um elenco de nove atores da ATRAMA, companhia amadora de teatro sediada nas Taipas. Escrita por um elemento do grupo, sob o pseudónimo de Marlin Wash, a dramaturgia constrói-se em torno das “relações de poder de uma fábrica”, mas com “elementos estranhos e surrealistas” numa “narrativa nem sempre linear”, diz Alexandrino Fortes da Silva, um dos encenadores da peça, a par de Patrício Torres.
E entre os 200 espetadores, há testemunhos de quem ficou a matutar naquilo que viu. “Apesar de ser uma narrativa, algumas pessoas disseram-nos ter ficado a pensar naquelas relações de poder”, relata, a propósito de uma das quatro peças apresentadas na Mostra de Amadores de Teatro (MAT) de 2022.
A apresentação de “um objeto entendível para o público, mas sem tudo dado” foi fruto de um trabalho de quatro meses, no “horário pós-laboral” dos intérpretes. Ainda assim, as restrições de tempo “não servem de desculpa” para não se “criar um objeto artístico que questione”. “Dá muito trabalho criar nos nossos tempos livres, mas não queremos mostrar mais uma peça de teatro. Nesse sentido, não interessa muito sermos amadores ou profissionais”, defende o encenador.
Há, porém, aspetos em que ser-se amador ou profissional de teatro faz diferença: o treino dos atores desde logo, ainda que a maioria do elenco da ATRAMA tenha “formação de base” no Teatro Oficina. Outro fosso entre esses dois universos é o dos recursos para transpor o texto para o palco: só no dia do espetáculo é que o grupo testou som, luz e cenografia no CCVF.
Até lá, o processo repartiu-se pela sala da companhia nas Taipas e pelo Centro para os Assuntos de Arte e Arquitetura (CAAA), o palco dos ensaios nas três semanas que antecederam a MAT. “Arranjámos esse espaço para reproduzir a parte fundamental do cenário. Não era possível montar o cenário, perceber a geografia dos elementos e colocar as pessoas em contacto com os adereços”, reconhece Alexandrino Fortes da Silva.
A outra limitação do teatro amador é a ausência de um circuito para exibir os espetáculos por mais do que uma vez, dando-lhes espaço para se “corrigirem e melhorarem”.
Dar vida às narrativas do “desconforto”
Um pouco mais a norte, na Casa do Povo de Briteiros, o esforço daqueles que “sacrificam muito de si” assegura a longevidade do Citânia há 19 anos; o grupo amador reúne-se todas as sextas-feiras para as oficinas de teatro de Bruno Laborinho, encenador que dá um cunho profissional à “imensa vontade criativa” dos atores. “É vital alguém profissional no seio deles para os levar a um objeto artístico mais sólido e arrojado, mas, na maioria dos casos, faltam os recursos financeiros e técnicos”, diz ao Reflexo.
Ligado ao grupo desde a Capital Europeia da Cultura, Bruno Laborinho e os atores regressaram, neste ano, à MAT para apresentar Contos Isolados, leque de narrativas sobre o confinamento que materializou numa performance com as personagens “fechadas nos seus quartos”; os intérpretes, cada um envolto num quadrado, encaravam o público através de uma barreira de plástico, numa “evocação do desconforto sentido durante a pandemia”.
“Trabalhámos a ideia da paranoia, da raiva, daquela altura que não aguentávamos mais. A certa altura, os atores destroem tudo em palco, despem-se parcialmente, rasgam os plásticos. As pessoas sabiam que não podiam ir para a rua, mas não aguentavam mais dentro dos plásticos. Quando se cruzavam com outras pessoas, assustavam-se e voltavam para casa”, descreve o encenador, acerca do culminar de um processo artístico que durou quatro meses.