Casa azul da Av. República: espaço de mudança com cheiros do passado
Década de 50 do século XX: José Manuel Silva frequentava a Escola Primária do Pinheiral e ocupava parte dos tempos livres a brincar numa casa que era mais do que isso: o rés do chão abrigava a mercearia dos pais e a designada Padaria Grande, quase tão antiga como aquele distinto edifício da Avenida da República em tons de azul. No Inverno, privilegiava-se as áreas de cozedura do pão. “Tínhamos o terraço e, por baixo, a área de fabrico do pão e o forno. Às vezes, juntávamo-nos ali e fazíamos os deveres da escola. Era mais quente. Também gostavam de vir para aqui. Era uma casa melhor do que a maioria”, recorda o comerciante.
A sua ligação à casa dura há 73 anos, tantos quantos os que leva de vida: mudou-se para ali logo depois de nascer, numa outra casa em plena vila termal. José Manuel Silva deixa temporariamente uma das divisões do rés do chão – serve como armazém de vestuário e provisoriamente como boutique – para mostrar ao Reflexo a origem daquele edifício revestido a azulejos. Ela está inscrita na varanda que encara o coreto: o desenho em ferro fundido revela as iniciais “AML 1913”. “O fundador é o António Manuel Lourenço, pai da Maria da Graça Lourenço, tia da minha mãe”, adianta, traçando a genealogia da habitação.
As portadas abrem-se para uma sala de jantar com teto decorado, a revestir uma estrutura em estuque e tabique. A atmosfera evoca precisamente o começo do século XX, com paredes coloridas a óleo. À saída, as portas abrem-se para uma escadaria em madeira escura, iluminada por uma claraboia que parece abraçar o céu, tamanha a sensação de verticalidade. “A escadaria parece a entrada de um hotel”, diz José Manuel Silva, enquanto a mostra. “É o ex-libris”, acrescenta o seu filho, Didier. "A claraboia e aquele escadario são, sem dúvida, o melhor da casa”, considera.
De volta à calçada, pela rua Reitor Antunes Machado, vislumbra-se uma outra fachada da casa, com a inscrição “1935”; remonta ao anexo que alberga uma florista. Foi a primeira alteração de fundo. A segunda dar-se-ia com o revestimento em azulejo, de abril de 1977, como atesta um documento em posse de Didier Silva. “A casa era cor de telha. Começou a cair o estuque e renovou-se a casa”, assinala.
Casa aberta a novos cheiros, sons e imagens
Didier Silva é um dos herdeiros daquela casa, a par da irmã, Teresa, e dos descendentes de Augusta Dias de Castro. A decisão culmina uma ligação de gerações entre a sua família e a família Lourenço; afinal, a sua avó, Cândida Baptista de Matos, e o seu avô, Joaquim da Silva – “o filho mais velho do Dominguinhos da Rabata”, diz José Manuel Silva, em memória do pai -, instalaram-se no rés do chão quando os Lourenços ali habitavam.
Embora firmemente ligada à família que a edificou, a casa esteve sempre na linha da frente quanto às novidades sociais e recreativas. António Manuel Lourenço Júnior, filho de quem construiu, esteve na fundação do Clube Caçadores das Taipas e o seu filho – José Manuel Lourenço – foi hoquista no Turismo Hóquei Clube.
“Era conhecido como Zequinha da Padaria”, lembra José Manuel. Era uma referência, claro está, à Padaria Grande, estabelecimento que se distinguia na vila quanto ao fabrico do pão. “Natal, Páscoa, verão, mês de agosto: eram as alturas mais fortes. Há 50 ou 60 anos, ainda se vendia a prestações. Era fiado. Sempre foi uma grande padaria com movimento”, descreve.
No andar superior, a família Lourenço também acompanhava a mudança; aquele foi o segundo lugar a ter televisão em Caldas das Taipas, no final da década de 50. "O primeiro foi o quartel dos bombeiros, depois foi aqui e o terceiro foi a casa do padre. Foi logo depois de aparecer a RTP. O padre era o Manuel Joaquim de Sousa. Ao início, vinha aqui a casa ver televisão. Era uma Philips.”, diz José Manuel, evocando outra memória de infância. Os telefones também escasseavam e os pedidos de chamadas à sua tia abundavam. “Os banhistas vinham para as termas e ficavam no Manso, mas ele não tinha telefone. O telefone era aqui”, prossegue.
Os negócios do presente e os receios do futuro
A Padaria Grande fundiu-se, mais tarde, com a Pavico e acabou por fechar portas. O espaço de venda de pão dividiu-se em duas unidades para comércio e serviços. Uma delas, justamente por baixo da varanda com a inscrição “AML 1913”, acolheu um gabinete de contabilidade, uma advogada e um empreiteiro antes de servir de armazém para a Boutique Didi. A divisão à esquerda é, desde 1979, a Ourivesaria Silva. Manuel Silva abriu então um negócio em que a procura se transformou consoante a moda: os cordões e os fios pesados e grossos, em voga nas décadas de 80 e 90, deram lugar a peças “mais finas”, a “coisas diferentes”, no início do século XXI, e a um reavivar do interesse pela arte tradicional nos últimos anos, diz Alberto Silva, filho de Manuel.
Com o balcão voltado para uma Avenida da República em transformação, receia o impacto das obras, sobretudo em tempos de inverno e de chuva, tão presente neste outubro. “No verão, vai ser bonito passear. Mas se tivesse de deixar o carro na feira num dia de chuva, não vinha de guarda-chuva à ourivesaria”, realça. Ainda mais cético, José Manuel Silva crê que a intervenção “deu cabo do comércio todo”. “Não passa ninguém aqui. Não acredito que o centro das Taipas vá ter o movimento que tinha”, sintetiza. Ainda assim, vê futuro na casa azul. Afinal, “esteve sempre habitada e bem estimada”.