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Paulo Ferro apresenta "A música que Ulisses ouviu"

Redação
Sociedade \ sábado, junho 04, 2005
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Nas obras de José Paulo Ferro agrupadas com o título de "A solidão das árvores", a música e o poder de sedução das imagens são presença constante.

Há uma maldição muito antiga que paira sobre a representação do mundo pelos artistas é que, segundo Platão e visto que nunca temos acesso à verdade das imagens, essas imagens partilham de uma dupla condição de enganos: engano daquilo que vemos, que nunca é a realidade na sua essência, em primeiro lugar, engano da imagem feita pelo artista, depois, que perpetua o simulacro em que, platonicamente, todos vivemos. A condenação platónica, se nunca impediu que, pelos séculos fora, a arte produzisse incessantemente as obras que é seu mister produzir, acabou por redundar, em certos casos, na condenação moral da sedução que a arte exerce sobre os sentidos. Como se a arte, afinal, partilhasse com a beleza dessa faculdade de sedução que as sereias, noutros tempos, tinham exercido sobre Ulisses.
A comparação com Ulisses não surge aqui fortuitamente. De facto, se Platão se debruçou sem rodeios sobre a capacidade enganadora dos artistas e Platão referia-se, na época, sobretudo aos poetas -, já o que se passava com a música e os seus efeitos nos homens necessitou de uma narrativa exemplar que afirmasse sem rodeios o castigo reservado a quem se deixasse envolver por ela. Ulisses, que bem o sabia, fez-se acorrentar ao mastro do navio para poder ouvir o canto das sereias sem se perder. E mandou tapar os ouvidos aos seus marinheiros para que não naufragassem.

Nas obras de José Paulo Ferro agrupadas com o título de A solidão das árvores, a música e o poder de sedução das imagens são presença constante. Pode dizer-se que, aliás, as obras não vivem sem elas: ao brilho próprio do médium que o artista utiliza associa sistematicamente a frase de uma canção que, na abertura de sentidos que a música sempre proporciona, evoca também os momentos de tranquilidade em que os desenhos foram realizados. A solidão das árvores acaba por ser a metáfora da condição do artista enquanto trabalha, dentro ou fora do atelier: isolado, mas ligado ao mundo que o rodeia pela convocação das vivências e das experiências que enformam o seu olhar sobre as coisas.

As imagens que se salvam, para retomar uma das frases que se inserem num desenho, são assim também aquelas que sobrevivem na memória, ou porque a impressão que causaram foi forte demais para que o trabalho normal de selecção a que usualmente procedemos não as relegasse para o esquecimento, ou porque estão tão presentes que é impossível não dar por elas. De qualquer modo, essas imagens acabam por ressurgir e por se organizar segundo um processo de colagem, que é afinal o mesmo pelo qual a realidade, já não a que é criada pelos poetas e pintores platónicos, mas aquela com que lidamos todos os dias, se insere nas obras de José Paulo Ferro: através do pequeno insecto que, atraído pelo brilho do pigmento, acabou por juntar o seu destino ao dos desenhos que aqui se mostram. É o insecto que, preso à imagem, no volume minúsculo que cria sobre a folha de papel, acaba por atrair o olhar de quem vê, levando-o a compreender que pintar é também criar um objecto. Um objecto, para além de todas as imagens que represente.

Por isso, tudo nestas obras apela à capacidade de ver; e, aliás, o próprio Ulisses nunca pediu que lhe tapassem os olhos, talvez porque também quisesse ver, além de ouvir. Ë pela via da opticidade que elas se revelam, e também pela via dessa outra visão, interior, de criar imagens, a que damos o nome de imaginação.

Lisboa, Abril de 2004
Luísa Soares de Oliveira

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