Nestas salas a solidão combate-se em grupo.Agora, Ana e Laurinda são amigas
Ana Freitas e Laurinda Fernandes cruzavam-se em Barco e trocavam os cumprimentos da praxe: um bom dia, um ocasional “como está”. O tal conhecimento “de vista”, que não permitia saberes aprofundados da vida de cada uma. Agora tudo é diferente: são amigas. Frequentam a Sala de Convívio Sénior da freguesia e por lá partilham “histórias de vida”. “Há histórias boas e más, a minha não é muito boa. Mas agora estou feliz”, sentencia Laurinda.
E que bom ser sexta-feira. É dia de Gerações em Movimento no espaço de convívio sénior e quem passar pelo arruamento que abarca a Junta de Freguesia vê gente atarefada que circunda mesas, troca ideias e olhares. Com 72 anos, Laurinda frequenta o espaço – que antes era numa escola – “praticamente desde o início”: “Ajudaram-me a levantar quando estava em baixo. Isso é muito importante, nós temos de nos ajudar, complementar”.
São 14h00 e há gente que ainda vai chegando para umas “três horinhas animadas”. Uma cadeira de madeira segura a porta metálica de entrada que teima em obedecer ao vento e a fechar-se sem supervisão. Há uma voz que coordena os movimentos de quem se abriga de uma tarde outonal fria: António Freitas está desde março de 2013 no espaço a combater uma inimiga “muito grande”: a “solidão”. “Organizamos esta associação com a intenção de reunir as pessoas: principalmente aquelas que viviam sós. Queríamos que elas se juntas sem”, refere ao Reflexo.
"As pessoas conheciam-se umas às outras, mas cruzavam-se na rua e não passava de um boa tarde, um bom dia. Eram conhecidas, mas queríamos que fossem amigas. E é o que temos”. António Freitas explica que há 23 utilizadores do espaço e que o projeto vai a caminho dos nove anos, mas vai sendo interrompido. “Sabe-me dizer onde estão as agulhas e as linhas?”, questiona uma voz apressada.
“O que é que fez à minha mãe?”
É um dia preenchido. Depois de quase dois anos encerrado, o espaço vai retomando a atividade lentamente. Há mostras do trabalho dos “alunos” plasmado nas paredes e em cima das mesas as tesouras e fitas mostram que o dia também é de trabalhos manuais. Mas não só. Um rádio espalha música pela sala e prepara os corpos para dançar.
E isso fez falta a Ana e Laurinda – e aos outros 21 utilizadores do espaço – durante os períodos de confinamento sucessivos provoca- dos pela crise sanitária. “Durante o tempo em que estivemos afastadas guardamos muita coisa para nós”, reitera Laurinda. Agora, com Ana por perto, voltaram à melhor rotina possível. A amizade foi sendo construída ao longo dos anos e a pandemia não a abalou. Ana Freitas, 74 anos, lembra como começou: “A gente passava umas pelas outras,
esta senhora [Laurinda] trabalhava nas escolas, não tínhamos confiança, a gente começou a juntar-se aqui no Gerações em Movimento e agora é minha amiga”.
Toda a gente se fica a conhecer melhor. Por aqui, constroem-se comunidades. Laurinda recorda quando uma professora incentivou as utentes a escrever a história de vida. Em mais de 20 contos, entre “histórias boas e más”, forjaram-se afinidades; um conjunto de pessoas tornou-se cúmplice.
E há uma transferência para as outras horas do dia. O Gerações em Movimento não termina às 17h00 de sexta-feira. António Freitas exemplifica: “Comecei a ter os filhos das senhoras que cá vêm a vir ter comigo para perguntar: ‘Senhor Freitas, o que é que vocês fizeram à minha mãe? É que ela anda sempre triste e agora chegamos a casa e se for a ver ainda canta’”.
Povo que ainda canta
A poucos quilómetros, na freguesia vizinha, também se canta. Terça-feira é sinónimo de Este Lugar Não é Para Velhos (ELNPV). É dia de afinar vozes. Um professor recria com os “alunos” cantigas de outros tempos – vivências trazidas para a sala pelos mais velhos – e ensina novas canções. O regresso vai-se fazendo a “conta-gotas”. “Tínhamos um atelier de trapos e farrapos, costura e ainda não fizemos esse. É numa mesa, tudo muito próximo. Tenho receio dos ajuntamentos. É um regresso com reticências”, explica a coordenadora Susana Felgueiras.
Entre aulas de judo, canto, ou oficinas de trabalhos manuais, Susana Felgueiras nota que após a paragem em virtude da pandemia “algumas pessoas desistiram”. Em contrapartida, têm chegado mais pessoas de freguesias limítrofes. Maria Judite Mota frequenta o espaço desde o início, quando o ELNPV tinha casa no recinto da feira. No Antigo Mercado, à porta da sala multiusos, teme que “tudo volte para casa”. “Faz muito bem à mente e à alma, saímos de casa, e isso ajuda muito a viver. Temos vida”.
Medo de voltar
Em Barco, os mesmos anseios. António Freitas regozija-se com as fotos alfinetadas num quadro de viagens à Assembleia da República, Pavilhão Rosa Mota e “até” Santiago de Compostela. Saídas de Guimarães não tem havido e o principal receio é que haja um retrocesso. “Parámos dois anos com a pandemia, os únicos em que não vim. Com a pandemia foi muito complicado. Passei muito tempo isolada”, conta Ana Freitas.
Ouve-se o som da porta a arrastar a cadeira na tijoleira. São mais dois “amigos”. Dentro destas quatro paredes também se podem fazer viagens. Basta a “imaginação”, diz Ana. São 14h30, esta está quase a começar