
José Manuel Gomes: “Criei público, e ele vem: é o maior legado que deixo”
Assim que cessou o último acorde dos Capitão Fausto, diante de um polidesportivo repleto, a 20 de setembro de 2024, José Manuel Gomes apercebeu-se de que o seu tempo à frente dos Banhos Velhos chegava ao fim e anunciou a saída em janeiro último. Responsável pela programação entre 2016 e 2024, após uma primeira aparição em 2013, o também músico e comunicador enaltece o aumento dos espetadores, muitos oriundos de fora, as propostas culturais além dos concertos e a aproximação às escolas. Referência na descentralização cultural, as Taipas deveriam ter um cineteatro com oferta de janeiro a dezembro, defende.
Anunciaste, em janeiro, que irias deixar de ser o programador dos Banhos Velhos. Foi uma decisão difícil de tomar? Foi rápida ou ponderada?
Tinha deixado de pertencer aos quadros da Taipas Turitermas em 2023. No final dessa época, não sabia bem se ia fazer ou não a temporada de 2024. Tive disponibilidade em 2024, e o convite apareceu. Para 2025, por mútuo acordo, deixei a função. Já estava desgastado. Não sabia bem o que poderia trazer de novo. Estava a sentir que não seria mau novas ideias. Isto nunca foi meu. Mais do que uma decisão rápida ou lenta, foi uma decisão natural. No final do ano passado, percebi que era o tempo certo para eu sair. Não quer dizer que seja um adeus definitivo.
Passados todos estes anos, qual foi a principal marca que deixaste? O que destacas nesse legado?
Pegando numa palavra, a persistência. Já cá tinha estado em 2013, e até antes, mas, a partir de 2016, havia sempre aquele receio: e se não vem ninguém? Eu saio com outro receio: será que este espaço chega para todos? Ficam as marcas da persistência e da continuidade. Foi importante para este ciclo ter um programador por tanto tempo. Até 2016, tinha variado entre mim, o Paulo Dumas e o Pedro Conde. A continuidade fez com que a adesão acontecesse. Os Banhos Velhos nunca dependeram do número de pessoas que vinha, mas organizar algo e não vir gente é sempre chato. Nas últimas quatro a cinco épocas, já sabíamos que vinha gente. A marca que deixei é essa.
Em 2011, estavas a fazer mestrado em Mediação Cultural e Literária na Universidade do Minho e escolhes os Banhos Velhos para a dissertação. Foi um mestrado feito à hora certa, no tempo certo? Os astros alinharam-se?
Foi uma sorte. Tinha de fazer tese, e ainda não sabia sobre o que havia de fazer. Gostaria de fazer algo ligado à programação, embora fosse difícil para mim encontrar o espaço. Se fosse ao Vila Flor propor uma tese de mestrado comigo a programar, a resposta iria ser um não. Naquela altura, percebi que os Banhos Velhos iam ser requalificados e iam ter agenda cultural. Os astros alinharam-se um pouco: a oportunidade deste sítio estar a ser requalificado, de eu conhecer o programador, o Paulo Dumas, de eu ter alguma proximidade com o Ricardo Costa, à altura presidente da Turitermas. Conversei com eles, com o José Maia Freitas, da direção, e com o Luís Soares, diretor executivo, expliquei o propósito, fiz a tese. Aprendi tudo o que era programação, logística, promoção. Se este sítio não estivesse a ser requalificado com este propósito, se calhar nunca teria feito isto.
Uma das conclusões da dissertação é a de que se falava ainda muito pouco de descentralização cultural. No contexto de Guimarães, os Banhos Velhos foram pioneiros?
Os Banhos Velhos são tão pioneiros que nem a própria Câmara falava em descentralização cultural. A Câmara começa a falar de descentralização com o ExcentriCidade [lançado em 2015]. Os Banhos Velhos foram o primeiro sítio de descentralização cultural e o que melhor cumpre isso. Podemos ir a qualquer evento do ExcentriCidade e não vemos o mediatismo que os Banhos Velhos já têm, pela qualidade, pela continuidade e pela persistência. Os Banhos Velhos são pioneiros em muita coisa. Raramente deram o devido crédito aos Banhos Velhos por isso.
Assumes definitivamente a programação em 2016. Já trabalhavas com os Banhos Velhos antes. De que forma mantiveste o trabalho anterior do Paulo Dumas e do Pedro Conde e, ao mesmo tempo, acrescentaste algo novo?
O Paulo Dumas e o Pedro Conde montaram o projeto. A linha de programação que tentaram incutir foi muito importante. Curiosamente era uma linha de programação onde ia beber muito, pelo meu gosto pessoal, mas sobretudo pelos sítios onde consumia cultura. Tentei acrescentar a proximidade com as escolas. Associo muito os Banhos Velhos à música. Olhávamos para a programação e víamos que 70 a 80% era música. Inverti um bocadinho a ordem. Apesar de os concertos musicais serem os pontos altos, transformei os Banhos Velhos num programa cultural de 20 a 30 iniciativas por ano, com um concerto mensal apenas. Tudo o resto baseia-se em palestras, tertúlias, cinema, teatro ou ateliês infantis, que já existiam, mas em menor número. Aqui reside um dos grandes trunfos e segredos dos Banhos Velhos: a democratização do palco. Tinhas alunos do 12.º ano a fazer teatro e, na semana a seguir, recebias os Capitão Fausto.
Quais foram os concertos mais marcantes enquanto programador?
Há um que me diz muito, logo na época em que eu assumo, em 2016. Os Sensible Soccers encheram isto. Em 2016, tivemos uma temporada ligada às máquinas. Costumo dizer que os Sensible Soccers salvaram os Banhos Velhos. Outro concerto que me dá muito prazer ter tido cá foi em 2019, os Sunset Rollercoaster, de Taiwan. Contratei-os por 700 euros, e, há dois anos, tocaram em Coachella (Estados Unidos), o maior festival do mundo. Houve o José Pinhal Post-Mortem Experience, em 2023, mas, no ano passado, o último concerto dos Capitão Fausto encheu o Polidesportivo de uma maneira que, se calhar, nem as Festas de São Pedro o fariam. Foi o último evento que fiz. Senti ali que era o fim.
Os Banhos Velhos têm atraído cada vez mais espetadores. A prioridade, a teu ver, deve ser a de manter o paradigma ou vês margem para crescer?
Outra das marcas que consegui deixar, e de que me orgulho muito, é a de ver muita gente de fora. Começa a vir mais gente de fora em 2018. Quando digo de fora, falo de Lisboa. Nesse tal concerto dos Sensible Soccers, vi muita gente do Porto. Inicialmente, o pessoal das Taipas não vinha muito. Os Banhos Velhos começaram a ganhar quando começou a vir gente de Guimarães para aqui. Foi um bocadinho ao contrário: não foi de dentro para fora, foi de fora para dentro, até chegarmos a um ponto em que temos gente de Faro, de Viana do Castelo, da Galiza. Isto poderá crescer dependendo sempre das condições que derem. O maior desafio é, com o mesmo orçamento, fazer mais. Acima de tudo, o nome da marca Banhos Velhos está feito. Tenho o desejo de vir aqui no próximo verão e de ver um concerto com isto cheio. Criei público, e ele vem: é o maior legado que deixo.
Nasceste, cresceste e vives nas Taipas. A tua ligação às raízes é evidente e foi consolidada através dos Banhos Velhos. Findo este ciclo, vês-te a contribuir de outra maneira para o panorama cultural da vila?
As Taipas têm uma coisa que nenhuma outra freguesia em Guimarães tem, excetuando, claro, o centro da cidade. Têm massa crítica. Têm muitos músicos. Têm uma companhia de teatro que apareceu aqui, ATRAMA. É uma vila diferente. Há aqui qualquer coisa que não se vê noutra freguesia. Dito isto, as Taipas já mereciam uma programação cultural, seja sob a marca Banhos Velhos ou outra, de janeiro a dezembro. Se calhar já mereciam um cineteatro que pudesse acolher a programação cultural contínua. Temos um auditório dos bombeiros, que é muito útil. Tem os Banhos Velhos, que acontecem apenas ao ar livre, sob condições muito difíceis e trôpegas. O meu propósito de fazer coisas pelas Taipas existe. Se houvesse um equipamento para eventos de janeiro a dezembro, estaria aqui ainda.
[Conteúdo publicado originalmente na edição de Abril 2025 do jornal Reflexo]