“Isto é uma terapia”: a terra da horta comunitária já está a ser trabalhada
A manhã solarenga convidava e Olívia Ribeiro aproveitou para visitar os metros quadrados de terra preta que vai cuidar e de onde, idealmente, vai ver brotar a recompensa do trabalho. Com 60 anos e (ainda) com pouca experiência em horticultura, Olívia viu no projeto da Horta Comunitária de Caldelas uma oportunidade para se aproximar da terra – e partilhar experiências. “A gente vai olhando, vai vendo. Já conheci a minha ‘vizinha’ e até já me disse: ‘Se precisares de ferramentas ou alguma coisa, eu empresto, eu partilho’”. “Está-se aqui muito bem”, sintetiza.
E uma das palavras-chave deste projeto é mesmo essa: partilha. Pensado como um espaço para famílias, a horta comunitária – a segunda deste género do concelho – quer dar a oportunidade a “26 agregados familiares de regressarem ao cultivo”, de recuperarem o contacto com a natureza. A missão deste novo centro comunitário a céu aberto foi vincada pelo presidente da Junta de Freguesia de Caldelas, Luís Soares, e pelo coordenador da Brigada Verde da vila, José Fonseca, numa sessão informal de entrega das chaves do horto.
“Um projeto ambicionado desde 2017”, começou por explicar Luís Soares. Este espaço de partilha de experiências foi “beber muito à experiência de Guimarães” – foram identificados “aspetos menos positivos”, referiu. Na mensagem de “boas-vindas” ao espaço, o presidente da junta aproveitou para deixar uma mensagem de apreço aos funcionários que ajudaram a uma célere materialização do projeto. “Tudo isto foi feito com muita dedicação e empenho. Se não fosse assim, não tínhamos condições para avançar já para o projeto”, frisou. E isso, segundo Olívia, está patente no espaço que lhe calhou em sorte – os talhões foram sorteados aos inscritos. “Acho que não há por onde reclamar. Está ótimo, isto ainda cabe muita coisa, tem muito espaço para pôr umas coisinhas e para depois levar comigo”, resume.
Dar vida ao tempo morto
Como habita num apartamento, o contacto com a terra foi-se perdendo. Foi uma das razões que a levou a concorrer. “Dantes via, mas não fazia. Não tinha campos, a gente vai olhando, vai vendo”, e, agora, pode colocar em prática o que absorveu. No talhão de Olívia há penca-branca, courgette e tomate. “Ainda não há pimentos, ainda tenho de ir buscar. Tenho de trazer mais coisas”, explica, como que em jeito de escusa pelo aspeto modesto do talhão. O trabalho como massagista pode não deixar muitas horas livres para se deslocar à zona ribeirinha do Ave, perto do Parque de Campismo. Mas a produtividade nem é o principal objetivo. Também interessa “conviver, matar tempo morto”. “Isto é uma terapia para a cabeça”, atira.
De enxada na mão, a poucos metros do talhão de Olívia, Adão Cardoso reitera: “No tempo que estamos a atravessar, esquecemo-nos um bocadinho da confusão e do ambiente que, infelizmente, estamos a atravessar. As pessoas devem aderir a isto, é uma coisa que faz falta, faz muita falta”. Tal como muitos dos agregados que concorreram a esta iniciativa – a procura superou a oferta, segundo Luís Soares, este horticultor com 66 anos mora num apartamento. Encaixa numa das missões do projeto: o regresso ao cultivo. “É a minha primeira experiência num espaço deste género. Antigamente trabalhava-se muito no campo, os meus pais tinham um campo e eu ajudava”, recorda.
As luvas desbotadas pela terra e braços que dão nota de trabalho são mostra da dedicação ao retângulo atribuído. E o talhão dá sinais de ter sido alvo de várias empreitadas. Tem cor e sobressai em comparação com os mais próximos. Adão tem mais de 20 companheiros com quem trocar experiências. Vai à horta duas horas pela manhã e duas à tarde – “Depende daquilo que tenho para plantar. Levo sempre a tarefa até ao fim”, pontua – e, sob o signo de “ensinar e aprender”, tem passado os dias “muito contente”. “Acho este espaço muito suficiente para passar aqui o meu tempinho livre. Há pessoas agradáveis, que se nota que gostam de conviver, estou muito contente por isso. Dou conselhos, e já tive pessoas a ajudar-me”, explica ao Reflexo. A seu ver, este “intercâmbio de experiências” é o “mais importante” nesta iniciativa da Junta de Freguesia de Caldelas.
O convívio num “espaço agradável”, biológico e sustentável
Mesmo sem a formalidade, uma audiência considerável juntou-se numa sexta-feira ao final da tarde para receber as boas-vindas, indicações e também ouvir o arquiteto do projeto, Alberto Silva. Ainda não houve oportunidade de fazer uma inauguração formal deste projeto: as canteras começaram a ser trabalhadas a meio do mês (as chaves foram entregues no dia 14 e só durante a semana seguinte é que começou a ser possível ver os primeiros rebentos a brotar da terra). O verde foi, lentamente, ganhando terreno e já predomina em grande parte das courelas. Maximizar as áreas de convívio foi um dos principais objetivos delineados para “um espaço acolhedor, de partilha de ideias”, referiu o arquiteto. Esquartejado por um eixo vertical, possibilita que cada pessoa “tenha muitos vizinhos”.
O espaço conta também com canteiros para a Junta de Freguesia, logo nos primeiros talhões. As flores ali plantadas – importantes para chamar abelhas e, assim, contar com a ajuda destes polinizadores para combater pragas – vão ser cuidadas por funcionários da junta e da Brigada Verde. Está também determinado que os produtos hortícolas “cultivados pelos serviços da Junta de Freguesia e do Município de Guimarães serão integrados no banco de bens de primeira necessidade da freguesia”.
Esse é um dos pontos do regulamento que os representantes dos 26 agregados familiares levaram para casa. As instruções são claras: este é um espaço para promover a agricultura biológica e sustentável. “Uma alimentação mais saudável, sem químicos e sem aditivos” é um dos propósitos. Para além do regulamento, os novos horticultores receberam o “Guia de Boas Práticas para a Agricultura Urbana” produzido pela Câmara Municipal de Lisboa, uma das “inspirações” para o regulamento das hortas – “Estamos a seguir os bons exemplos, não estamos a inventar a roda”, reiterou o coordenador da Brigada Verde, José Fonseca.
Um dos aspetos mais vincados pelo coordenador das Brigadas Verdes foi a defesa do ambiente. Assim, os utilizadores devem submeter a apreciação a técnicos da entidade gestora a intenção de utilizar produtos “fitofarmacêuticose fertilizantes”. Entre os alertas dados por José Fonseca estava a atenção à possibilidade de ensombramento e proibição da plantação de qualquer tipo de árvores e de “qualquer hortícola, ornamental, medicinal ou aromática com caráter invasor”. Para evitar a compra de adubos ou fertilizantes que rompam com o regulamento, foi disponibilizado um compostor que estará à disposição dos agricultores.
“É como ir à pesca”
Numa representação visual entregue aos horticultores é referido que a maior parte dos talhões têm 25m 2 . Delfim Francisco ficou com um dos primeiros espaços sorteados. Pensou que teve azar. É que um carvalho por perto ameaçava travar a luz solar. Acabou por correr bem: “Até pensei que o sítio era pior, mas ele [o carvalho] até dá jeito: faz sombra durante uma parte do dia”. Foi um dos primeiros a chegar à sessão informal e, quando falou ao Reflexo, poucos dias depois, cavava a terra. Ainda com pouco tempo de labuta, já conhece os novos vizinhos. “É tudo gente fixe. Tudo fixe”.
Usa um chapéu para se proteger de um sol quente de maio. A manhã foi produtiva: plantou as primeiras culturas. Faz uso de alguma experiência que acumulou na ajuda a um amigo agricultor. Para já, alface, pimentos, pepinos e tomates populam os metros quadrados que lhe calharam em sorte. Delfim está, neste momento, em lay-off. Tem mais tempo. Quando regressar ao trabalho e as horas começarem a encurtar vai ter ajuda da mulher, que "está reformada". O portão das hortas abre às 8h00 da manhã e fecha automaticamente às 20h00. Tempo "suficiente". "Dá para muita coisa", indica. A história de Delfim é semelhante à de Adão e de Olívia. Mora num apartamento e a horta também acaba por servir de escape. “Estar aqui é como ir à pesca, a pessoa distrai-se, é um alívio”, explica.