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Felismina Vieira, a “mãe de todos” que chefiou os correios das Taipas

Bruno José Ferreira
Sociedade \ quinta-feira, junho 30, 2022
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Felismina Vieira (75 anos) durante mais de vinte anos – nas décadas de 80 e 90– foi chefe dos correios das Taipas, liderando a, na altura, estação dos Correios e Telecomunicações de Portugal.

Natural de Ponte, depois de completar o 11.º ano na Escola Industrial de Guimarães – Francisco de Holanda – submeteu-se a concurso a nível nacional e fez um estágio de um ano em Leça. Passou pelos correios de Guimarães, Riba D’Ave, Lordelo e Pevidém antes de chegar às Taipas, onde morava precisamente por cima da estação. Em entrevista ao Reflexo fala sobre a sua experiência na liderança dos correios das Taipas, e as vivências que teve na vila durante essas duas décadas.

Como é que entrou para os correios, ainda se lembra do primeiro dia nas Taipas?

Entrei para os correios, na altura Correios e Telecomunicações de Portugal, depois de acabar o curso, o 11.º ano, como se dizia, na Escola Industrial de Guimarães; a Francisco de Holanda. Nessa altura abriu um concurso, a nível nacional, e concorri eu e outra colega. Depois fui para o Porto, para Leça, para um estágio de um ano, e daí vim para os correios de Guimarães.

Foi depois dos correios de Guimarães que veio para a estação das Taipas?

Não, ainda passei por outras estações, como Riba D’Ave, Pevidém e Lordelo. Nesse período não era chefe, fazia o meu trabalho. Mas, em todas essas estações em alguns momentos assumi a chefia, sempre em substituição das chefes. Fui substituindo quando as chefes estavam de baixa ou tinham férias, e isso deu-me experiência para chefiar. Também as minhas colegas tinham medo de chefiar, mas eu não tinha. Eu ia. Também ganhava mais dinheiro (risos) e aprendia muito, porque é com o trabalho e com a prática que se aprende. A fazer as coisas é que vamos aprendendo.

Depois mudei para as Taipas. Cheguei a chefe quando a Dona Albina se reformou, como já tinha experiência a chefiar anteriormente nas outras estações por onde fui passando, como disse, acabei por ficar eu a chefiar a estação dos correios das Taipas. O senhor Aloísio, chefe de distrito, disse-me para ficar eu a chefiar.

Lembro-me que uma vez um senhor não saía da estação. Era meu chefe, mas eu não sabia. Eu não sabia quem ele era, mas ele sabia perfeitamente o que estava a fazer. Perguntei se precisava de alguma coisa ao que ele respondeu ‘estou à espera de uma chamada’. Depois é que percebi que ele veio ver o ambiente em que eu trabalhava e a forma como acarinhava as pessoas. Quando chegou a Braga disse às colegas que nunca tinha visto uma funcionária como a Dona Felismina das Taipas, com tanto jeito para lidar com as pessoas. Depois ele escolheu-me para ser a chefe da estação. E fiquei bem.

 

A Dona Albina, sua antecessora na liderança da estação dos correios das Taipas, também esteve muito tempo a chefiar. Que memórias tem da Dona Albina?

Dava-me bem com ela. A empregada da Dona Albina até olhava por o meu filho, só tenho recordações boas, era rígida, rigorosa, mas era uma boa profissional. Como disse, aprendi muito com ela. Tinha os seus defeitos, como toda a gente, mas era uma pessoa meiga. Ensinava-nos tudo.

Recordo-me que muitas vezes as pessoas não queriam ir para as Taipas trabalhar, mas eu não tinha medo. A Dona Albina era uma grande profissional, mas como tinha um estilo mais rígido nem toda a gente gostava. Aprendi muito com ela, lidei sempre muito bem com ela, aprendi e depois que ela saiu fiquei eu a chefiar. Gostei muito de lá trabalhar, nas Taipas, vivia mesmo por cima da estação e gostava muito; era bom para as crianças, mesmo para ir para a escola.

Era complicado morar mesmo por cima dos correios, no local de trabalho? Não a chateavam fora de horas, uma vez que vivia por cima da estação dos correios?

Às vezes (risos). Quantas vezes batiam à porta. Os correios sofreram uma estruturação interna e era feito propositadamente para termos em casa uma porta com acesso direto, por dentro, do piso de cima aos correios em baixo. Foi no auge dos correios, às vezes tinha de ficar a trabalhar até à meia-noite, e os meus filhos traziam-me leite cá abaixo. Na altura não havia concorrência, era tudo pelos correios. Trabalhei 31 anos e meio, mas a nível de horas, se formos a somar trabalhei muitas mais do que isso (risos).

Há alguma coisa que a tenha marcado especialmente nos tempos em que trabalhou nas Taipas?

Ajudei muito as pessoas, havia lá muita pobreza. Infelizmente naquela altura a pobreza era diferente da de hoje em dia. Ajudava com as burocracias. Lá vinham com os vales da reforma e eu fazia o pagamento, que era pouco. Ajudava-os com isso. Choravam que era pouco dinheiro para comer, e realmente era pouco dinheiro. Era triste isso naquele tempo. Há uma história nunca me fugiu da memória: estava juntamente com o senhor David, que era carteiro – já faleceu – e uma senhora chorava que depois de pagar o que tinha a pagar na Farmácia Monteiro já pouco restava para comer; ele disse que dava metade, eu dei outra metade, e pagámos a conta da farmácia para a senhora poder ter dinheiro para comer. Recordo-me que depois, um dia em que esta senhora matou o porco, como é costume nestas terras, foi à estação e trouxe-me uma chouriça que parecia uma roda de um carro, uma para mim e outra para o senhor David, para agradecer. Era comovente.

E recorda-se de outro tipo de situações que aconteciam?

Recordo-me também que tinha a tarefa de informar os familiares dos combatentes que faleceram. Tive que fazer isso muitas vezes, informar as famílias de soldados mortos na guerra em Angola e na Guiné. Recebia A informação em código por telex, tive formação em telex – uma das muitas formações que tive – e antes de haver fax recebia a formação pelo telex. O exército contactava-nos e depois eu tinha de dar a notícia. Não tive dificuldades com o telex, mesmo na formação, porque tinha formação da escola em contabilidade e isso ajudou.

Recorda-se de algum caso específico desses, em que tinha de dar a notícia?

Tive de dar várias notícias dessas a gente conhecida, de Ponte. Alguns colegas de escola. Lembro-me perfeitamente, recebia a informação por telex e depois telefonava para as pessoas a dar notícia. Não era fácil.

Trabalhou com vários carteiros neste período, várias pessoas que conheciam bem as Taipas?

Sim, até porque não havia o centro distribuição que há agora, em Covas, e por isso o trabalho era diferente. Chegámos a ter vários carteiros nas Taipas, seis ou sete carteiros, sob a minha responsabilidade. Recordo-me do senhor David, que já falei nele, lembro-me do senhor Martins, do senhor Hernâni, o senhor António. Entre outros. Eu era a mãe deles. Tomávamos lá café, dava-nos todos bem, havia sempre um bom ambiente no trabalho. Eles diziam: ‘Vem a mãe’. Lembro-me de as motas estar à porta, todas seguidas. Uma vez um caiu abaixo de uma ribanceira, na mota; nunca mais chegava, foram procurar e lá estava ele numa ribanceira com a mota. Podia ter morrido. Eu era a mãe de todos, sempre soube lidar com as pessoas e penso que havia bom ambiente e as pessoas gostavam de trabalhar.

 

 

Era um trabalho que exigia muita responsabilidade…

Sim, era. Naquela fase os correios tinham muitos serviços e alguns nem tinham concorrência. Durante uns meses ainda fizemos o trabalho de banco, numa altura em que os correios tinham esse serviço. Eu tive formação e ainda fiz alguns créditos habitação. Depois as coisas mudaram, os correios deixaram de se dedicar à banca, mas ainda fiz isso antes de me reformar. E cheguei a ser assaltada. Uma vez ia pela Rua de 19 de Junho abaixo e vi um sujeito que me viu com o dinheiro, sabia que eu ia para o banco e queria assaltar-me. Andava por lá um varredor da rua, que apercebeu-se da situação e ajudou-me.

Esse trabalho envolvia também outras exigências, até porque trabalhava com muito dinheiro...

Sim, era exigente. Depois de fazer as obras, a estação dos correios passou a ter uma caixa-forte, em betão, mas antes disso era um cofre. Mesmo eu vivendo por cima com a minha família tivemos tentativa de assalto várias vezes, mas nunca conseguiram entrar lá dentro. Bem tentaram, mas nunca o conseguiram abrir. Não podia ter muito dinheiro na estação, por isso ao fim do dia tinha de ir fazer o depósito em cassetes, ainda não havia o serviço que há agora de carrinhas de valores, e era eu que tinha de levar numa espécie de cofres externos. Não podia ter muito dinheiro no cofre, porque podia ser assaltada a estação, mas ao fim de contas podia ser eu assaltada ao levar o dinheiro ao banco (risos).

Nessa fase em que liderou a estação das Taipas, era uma estação com muito movimento?

A estação tinha muito movimento, era uma estação com muito trabalho por causa da indústria da cutelaria. Como já disse, antes era tudo enviado pelos correios, muitas coisas eram feitas nos correios. Eram encomendas e encomendas da cutelaria. Iam coisas para os Açores, faturavam muito. Tinha mesmo muito movimento, criaram-se postos de trabalho. Trabalhava muitas horas, às vezes seguidas. Enquanto não tivesse o serviço feito não podia transitar para o outro dia. E mesmo fins-de-semana, sábados, às vezes tinha de ser, tinha de trabalhar. Às vezes ia dando uma mão à frete, no atendimento, mas depois tinha de concluir o serviço interno. Depois de fechar as portas, ainda tinha de fechar o serviço. Mas sempre me senti feliz, apesar do trabalho ser muito, ter de fechar as contas do dia de todos os funcionários, gostava do que fazia

Alguma vez foi falada a possibilidade de fechar a estação das Taipas?

Que me recorde não, nunca foi falada tal coisa. Pelo menos no meu tempo. Os correios não eram o que são hoje, tinham outra preponderância. A estação dos correios das Taipas ganhou vários prémios de produtividade. Ganhou prémios de criação do Cartão Jovem, dos Certificados de Aforro e até ganhámos amos várias vezes um 15.º mês de prémio de produtividade que tinha.

Continua a vir às Taipas?

Ultimamente tenho estado mais doente, com problemas de saúde e, por isso, já há algum tempo que lá não vou.

Que principais recordações tem das Taipas e do período em que lá viveu e trabalhou?

Gostei muito das Taipas, de lá trabalhar. É uma boa terra. Dava-me bem com toda a gente. Era uma terra tranquila, segura. Às vezes havia um arrufo ou outro na discoteca, em frente, mas era seguro. As pessoas eram meigas, muito boas pessoas. Só tenho a dizer bem das pessoas das Taipas. Sabia lidar com as pessoas e era amiga de toda a gente. É uma terra pacata, tranquila, de boa gente. Gostei muito de lá viver.

 

ndr: Esta entrevista foi originalmente publicado na edição #312 (junho 2022) do Jornal Reflexo, lançada a 1 de junho.

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