Em São Clemente e em Vila Nova, os cidadãos agitam-se para desfazer a união
“Vila Nova é Vila Nova e São Clemente é São Clemente, mas isto já de há muito tempo”, reitera Abílio Piairo, presidente da Junta de Freguesia de São Clemente de Sande entre 1997 e 2013 e membro da Assembleia da União de Freguesias (UF) até 2017. “Temos de ser independentes para tratar dos nossos assuntos e eles dos deles. Eles têm o seu património, nós o nosso”, defende, por seu turno, António Carneiro, presidente da Assembleia de Freguesia de Vila Nova de Sande na década de 90.
Na comunidade que alberga a capela de Nossa Senhora da Saúde ou naquela que exibe agora uma casa mortuária sui generis, há cidadãos prontos a separarem o que a lei para a Reorganização Administrativa do Território das Freguesias, de 28 de janeiro de 2013, uniu.
Fruto da designada Lei Relvas, o número de freguesias em Portugal caiu de 4.260 para 3.092, tendo sido Guimarães o palco de 17 agregações; Vila Nova, com 1.739 habitantes à data, e São Clemente, com 1.695, constituíram uma das novas uniões, num processo contrário à “vontade do povo de São Clemente”, recorda o então presidente da Junta. “Na Assembleia de Freguesia, toda a gente foi contra a união, mas fomos obrigados a agregar-nos. Desde sempre manifestámos o nosso desejo da separação”, avança ao Reflexo o ex-autarca eleito pelo PS.
O movimento em prol da desagregação, acrescenta, começou a trabalhar assim que a reversão da lei de 2013 voltou à agenda política nacional, antes de a porta para esse desígnio se escancarar a 24 de junho de 2021, com o “regime jurídico de criação, modificação e extinção de freguesias”, que revoga a lei Relvas.
Graças ao artigo 7.º, que estabelece um mínimo de 750 eleitores para uma freguesia existir por si só, a população de São Clemente sabe que é possível reverter a fusão, daí o grupo de cidadãos estar a crescer. “Não são 100, nem 200 pessoas a favor. São mais. Se houvesse um referendo, dava mais de 90% a favor da separação”, sublinha.
Para Abílio Piairo, a união faz ainda menos “sentido” quando São Clemente alberga serviços como lar de idosos e creche, além de assegurar o funcionamento da antiga sede da Junta, e ostenta um dos “maiores” territórios no concelho; a área de 4,87 quilómetros quadrados, a 16.ª entre as antigas 69 freguesias, dificulta, do seu ponto de vista, a gestão do presidente da união. “Não tem hipótese de ver o que se passa nas duas freguesias. É impensável ajudar e orientar as pessoas da melhor forma com esta dimensão de terreno”, alega.
E há um outro ingrediente que o faz acreditar no sucesso da causa: os fregueses de Vila Nova de Sande também estão “de acordo” com a separação. Um dos casos em que a afirmação se confirma é o de António Carneiro. O cidadão argumenta que a união foi imposta “contra a vontade da população”, sem benefícios para quaisquer das freguesias.
Por ver cada uma das freguesias munida de serviços próprios o ex-presidente da Assembleia de Freguesia pensa que elas “não têm nada que estar a viver em união”, ainda para mais quando a ligação entre as populações “nunca foi grande coisa”. “Não temos nada contra São Clemente, nem São Clemente contra nós, mas o pessoal de Vila Nova convive muito mais com Campelos e com Brito do que com São Clemente”, compara.
Convencido de que a maioria da população deseja o fim da união, até pela “ideia de se criar um movimento para Vila Nova se tornar novamente independente”, António Carneiro crê que, dada a nova lei, o processo vai avançar com "mais facilidade” até à decisão final em Assembleia de Freguesia.
Sessão extraordinária pode até ser em maio
Carlos Gonçalves é um dos fregueses de São Clemente de Sande a trabalhar para que a Assembleia de Freguesia Extraordinária seja uma realidade, tendo já falado sobre o assunto com o presidente da UF, Tiago Rodrigues. Se vir que a decisão se arrasta no tempo, o cidadão promete “recolher assinaturas” para força a sessão. “Até ao final do ano, isto tem de ser resolvido”, declara ao Reflexo. “Há um grupo de cidadãos interessado em fazer isso. Se a Junta não avançar, reunimos umas assinaturas para obrigar a uma Assembleia nesse sentido”.
Ligado ao processo desde o final de fevereiro, Carlos Gonçalves diz não ver “evolução nenhuma” no processo municipal para a desagregação de freguesias, mas, ainda assim, crê que a separação vai mesmo a votos, tendo em conta as intenções já expressas pelas comunidades e os contextos de cada território. Mais do que pelo “bairrismo”, São Clemente ambiciona reverter a fusão pelo simples facto de que o pode. “Se temos todas as condições para trabalhar sozinhos, porque havemos de estar subjugados à outra freguesia?”, interroga-se.
Da parte do executivo da UF, aguarda-se precisamente que os cidadãos assumam a “iniciativa”. Eleito em outubro de 2021 pela coligação Juntos por Guimarães, numa segunda votação, Tiago Rodrigues diz mesmo que não pode ser ele a desencadear o processo. O autarca confirma, no entanto, tanto habitantes de São Clemente, como de Vila Nova de Sande, já lhe comunicaram a ambição de se desagregarem, restando marcar a sessão extraordinária da Assembleia para se tomar uma decisão.
Depois de aprovado o relatório e contas da UF na reunião de 30 de abril, Tiago Rodrigues adianta que maio é ainda um horizonte possível para a sessão. “A Assembleia de Freguesia Extraordinária pode decorrer 15 dias depois do pedido. Pode ser em maio”, detalha.
Num patamar mais acima do Poder Local, a Câmara Municipal de Guimarães diz “aceitar todas e quaisquer vontades das populações e “acompanhar os processos no que tecnicamente for necessário”, nas palavras do seu presidente.
Ao cabo de duas reuniões com os presidentes das 17 uniões de freguesia, com a equipa jurídica do município e com o especialista em direito das autarquias, António Cândido de Oliveira, Domingos Bragança sublinha que cada Assembleia de Freguesia em exercício deve “convocar as reuniões extraordinárias para os fregueses debaterem e desencadearem os respetivos processos de desagregação” quando assim é possível.
Abílio Piairo espera mesmo que o seja, de forma a devolver a independência à sua freguesia. “Estamos à espera de ordens da Câmara para fazermos o resto. Está tudo encarreirado. Temos o inventário do que existia antes de 2013 para o repor novamente a São Clemente”, projeta.
Nas restantes uniões, “as pessoas acabaram por se habituar”
As populações de Vila Nova de Sande e de São Clemente estão prontas a desagregar-se e, na verdade, são as únicas que o podem fazer a norte do concelho. As outras quatro UF – a de Sande São Lourenço e Balazar a de Briteiros São Salvador e Briteiros Santa Leocádia, a de Briteiros Santo Estêvão e Donim, bem como a de Souto São Salvador, Souto Santa Maria e Gondomar – vão assim permanecer. Em qualquer dos casos, há, pelo menos, uma freguesia com menos de 750 eleitores.
No caso da UF presidida por Francisco Gonçalves, é Balazar, comunidade amparada pela encosta da Falperra, que fica aquém desse requisito, pelo que nem sequer se vai debater a separação. “Na reunião decorrida no Salão Nobre da Câmara Municipal, disseram que não vale a pena discussão. A lei não permite a desagregação”, constata o autarca.
Mas os habitantes não levantam qualquer entrave à manutenção do status quo, sejam os de Balazar, sejam os de Sande São Lourenço. “Nas minhas freguesias, correu tudo muito bem. As pessoas têm-me dito que está bem assim, para nem sequer falarmos na desagregação”, explica.
Escassos quilómetros a nordeste, já com vista para a Citânia de Briteiros, o cenário é o mesmo. São Salvador e Santa Leocádia têm de continuar em união, como já esclarecido na mais recente Assembleia de Freguesia, na última quarta-feira de abril. Para o presidente, Diogo Costa, as eventuais pulsões para a desagregação não se veem entre os cidadãos.
“As pessoas acabaram por se habituar à União e já sentem isto de forma natural. Já não é uma coisa estranha, como em 2013. Não ouço as pessoas a dizerem que antes é que era bom ou que tudo deveria voltar ao mesmo. Aqui as pessoas sempre tiveram ligação”, realça o autarca recém-eleito, nas Autárquicas de setembro de 2021.
O responsável admite, contudo, que o sentimento de separação pudesse emergir caso “houvesse possibilidade” de avançar com o processo, porque “aquela sensação de pertença e de se querer ser independente nunca acaba”, seja qual for a freguesia.