07 dezembro 2024 \ Caldas das Taipas
tempo
18 ºC
pesquisa

Banda das Taipas. Batuta aos altos e baixos em 190 anos de “família”

Bruno José Ferreira
Cultura \ sexta-feira, novembro 22, 2024
© Direitos reservados
Entre altos e baixos, desavenças familiares e as instalações como “desafio de sempre”, a Banda das Taipas permanece como um dos pilares da comunidade taipense.

“No círculo das bandas, as bandas das redondezas diziam que seira impossível a Banda das Taipas ter iniciado em 1834; é mentira, expressavam”. Este foi o ponto de partida de João Ribeiro para a construção do livro da história da Banda Musical de Caldas das Taipas. O músico, e também já um pouco historiador no que à música diz respeito, defendeu recentemente a sua tese de doutoramento na Universidade do Minho, com o título “O ensino oficial e não oficial de música em Guimarães. Estudo de caso múltiplo”. Foi precisamente nas pesquisas relativas à sua tese que percebeu a lacuna literária que rodeia a Banda das Taipas.

Fez o “levantamento de mais de mil instituições de ensino oficial, e não oficial, de música no concelho” no âmbito do seu estudo, conta ao Reflexo. “Quando vou a investigar a academia da música das Taipas, a Academia de Música Fernando Matos, à medida que vou solicitando dados percebo que havia muito pouca coisa”, esclarece. “Aí nasce a ideia do livro”, conta João Ribeiro, seguindo-se a proposta feita à direção liderada por Henrique Azevedo para “organizar os documentos que existiam, pesquisar e tentar fazer o historial da banda”.

Estava dado início a uma epopeia, há já largos meses. Enquanto aponta para alguns documentos, que estão reproduzidos no livro, João Ribeiro vai desabafando: “Isto estava tudo perdido”. Aqui entroncámos naquele que foi o ponto de partida: “O meu primeiro grande objetivo, o ponto de partida, foi provar que esta data de criação da banda é real”, atira. O acervo pessoal de Carlos Marques foi um importante espólio para iniciar, a juntar a alguns recortes de jornal e outros rascunhos que, de forma desorganizada, era o que havia. Serviu para puxar o fio à meada, resultando num “trabalho de investigação histórica”, considera.

Um “grupo de músicos” referido por Camilo Castelo Branco em 1836

“Estamos a falar de uma banda com início de 1834, não há ninguém vivo que possa testemunhar, por isso tem de se partir dos registos escritos”, introduz o autor, explicando que em vários registos é usada a expressão “segundo uns velhos canhenhos” para justificar o ano da fundação. Portanto, há documentos que afirmam esta data, mas reportando-se a outros documentos que não chegaram a se encontrados. Contudo, em 1336 já Camilo Castelo Branco e Francisco Martins Sarmento no seu livro Notas da Velha História Pátria (1912) se reportavam a um “grupo de músicos” nas Taipas, que “trompejava”. Noutro registo, de 1839, há referência que “a banda musical da terra foi tocar” na visita do Conde das Antas. “Ou seja, havia uma banda e uma banda não se cria de um ano para o outro, comprovando-se que já existia”, atesta João Ribeiro.

O que se segue são quase três centenas de páginas onde está plasmada a realidade histórica daquela que é a mais antiga associação da vila. Dentro do possível, até onde se conseguiu encontrar e confirmar a informação é feito o retrato cronológico de maestros e presidentes, entre outras histórias, sendo que para lá da documentação há também o testemunho de vários intervenientes, através da realização de entrevistas. “Houve ao longo dos tempos vários conflitos entre famílias, estão lá descritos, sendo o mais recente entre os Barretos e os Matos. Isto para dizer que muita gente tinha documentação em casa”, sustenta o autor, reconhecendo que “há hiatos” entre a documentação, que complica o conhecimento da banda em determinados períodos. “A junção de documentação, recolha histórica, consulta de jornais e mesmo a própria parte das entrevistas, deu muita informação e essa foi a parte mais complicada, filtrar dados, cruzar informação e documentos”, considera, reconhecendo que “muita coisa foi perdida”, essencialmente no que concerne a “informação do século XX”.

“Tem de haver gosto. O envelope que se leva é um mimo, uma graça. É preciso sacrifício para fazer uma procissão em julho e agosto às duas da tarde. As pessoas não têm noção do que é”, Jorge Ribeiro, músico da Banda das Taipas

Parte da história recente da banda, quase quatro décadas, foi vivenciada por Jorge Ribeiro, o elemento no ativo há mais anos na Banda, aponta o maestro Charles Piairo. Começou por tocar flauta transversal na freguesia da Costa, de onde é natural, ingressando na Banda das Taipas pela mão de Fernando Matos, que foi seu professor, após iniciar a aprendizagem, “numa altura em que aprender música era muito diferente”, na Sociedade Musical de Guimarães.

Entrou para a banda em 1989 e lembra-se da primeira farda que vestiu. “Era verde; horrível”, começa por contar com uma gargalhada. “A minha primeira festa foi em São Cláudio de Barco, nunca mais me esquece, com a tal farda verde que ninguém gostava, mas era o que havia”, relata. Cultivou o gosto pela música, habituou-se a gostar de fazer parte, mas admite que nem sempre é fácil integrar a banda. “Tem de ser mesmo por gosto à música”, desabafa.

“Tem de haver gosto. O envelope que se leva é um mimo, uma graça. Se não houver sacrifício, gostar mesmo, as pessoas acabam por desistir”, considera, explicando os motivos desta sua ideia. “Há ensaios quase todas as semanas, e temos as romarias. Fazer procissões em julho e agosto às duas da tarde, acho que as pessoas nem têm noção do que é. Um calor terrível, com a farda e instrumento – alguns deles bem pesados – e às vezes percorrer dois ou três quilómetros. Agora não, mas antigamente saíamos de sábado a segundo, era muito violento”, aponta o músico. Neste contexto, tira, ainda assim, muitas experiências positivas e, sobretudo, a “camaradagem” entre pares.

O maestro à espera e os músicos no rio

No baú das memórias Jorge Ribeiro encontra, como em tudo na vida, apontamentos negativos e positivos. A Banda das Taipas reflete o passar dos tempos, é um espelho da sociedade, e nela vislumbra-se a mudança de mentalidades, como a entrada da primeira menina: “a Cristina; tocava órgão”. Passado pouco tempo entrou a Susana, mas “na altura ainda havia pessoas com uma certa mentalidade antiquada que não aceitavam bem”, considera. “Quase já todas as bandas tinham meninas e nós ficámos parados no tempo”, reconhece, lembrando depois o papel decisivo de Fernando Matos ao aceitar a primeira senhora na banda.

Recorrendo, então, à memória, Jorge Ribeiro destaca um momento negativo da vivência na banda, ocorrido pouco antes da atual direção, liderada por Henrique Azevedo, tomar posse. “Ainda bem que pegaram na banda”, murmura. “Aquilo bateu mesmo no fundo e eu, e os poucos que estávamos até tivemos vergonha de participar. Foi em agosto, em São Clemente, e seríamos 24 ou 25 com recurso a músicos de fora”, diz com um certo tremor na voz: “Na altura até disse que «gosto muito disto, mas assim não continuo com vergonha»”. 

No reverso da medalha há os aspetos positivos, que vão fazendo valer a pena. “Conheci diversas terras através da banda”, aponta desde logo, falando também das “amizades que se fazem” ou a oportunidade de “ver a juventude crescer”. Ainda antes de passar a contar uma das histórias positivas, solta desde logo uma gargalhada. “Uma altura, no verão, fomos tocar a Vilar da Veiga; na pausa para almoço eu, e mais meia dúzia, fomos para o rio tomar banho. O senhor Fernando [Matos], que era o maestro, estava à nossa espera, já a chamar porque queria começar, e nós no rio”, recorda Jorge Ribeiro.

Algures entre o grupo, de trompete em punho, atravessamos gerações e temos Samuel Duarte como o elemento mais novo. Natural de Sande São Lourenço, vindo de uma família em que a música é parte integrante, começou por entrar na Academia Fernando Matos, aos cinco anos, integrando ao fim de cinco anos para a Orquestra Juvenil.

O bisavô foi trompetista da Banda, o avô toca guitarra, e Samuel olha para a oportunidade como “uma experiência”. “É uma forma de ter conhecimentos, pessoas que são amigas, e ao mesmo tempo permite-me crescer enquanto músico, estar num grupo como este”, atira Samuel. O dia 30 de abril, no seu aniversário, foi dia de lhe anunciarem que ia passar da Orquestra Juvenil da Banda de Caldas das Taipas para a Banda Musical de Caldas das Taipas. Uma espécie de presente. Em relação ao futuro, Samuel – de 13 anos – ainda não pensou muito bem o que pretende fazer. “Para já foco-me nos estudos, mais para a frente logo se vê o papel da música. Para já é um passatempo que gosto muito”, termina.

“Este livro é um documento importantíssimo que, se não fosse realizado, muita informação ia ser perdida. Com a pesquisa muita coisa que já estava perdida, acabou por me chegar às mãos”, João Ribeiro, autor do livro

Voltando ao livro de João Ribeiro, num cruzar de gerações o autor considera-o “um documento importantíssimo” sobre o passado da associação. “Tenho noção, e algumas pessoas que me acompanharam, que muita coisa seria perdida se não fosse feito este trabalho, foram-me chegando às mãos atas, documentos de contabilidade, fotografias perdidas; entrevistas a pessoas já de idade que, não se fazendo este trabalho, acabaria por ser perder o testemunho”, dá nota. Um trabalho para futuro no qual se tem como base o passado.

É também um pouco nesse estigma que Charles Piairo trabalha enquanto maestro, com o “peso da camisola”. Envergar a farda da Banda, numa linguagem menos futebolística. “Mais importante que o nível artístico, é essencial perceberem a importância da associação, a importância da associação nas Taipas e o que é uma associação com 190 anos”, diz. Maestro desde 2017, tendo dado os primeiros passos musicais na Banda das Taipas, conduz o seu trabalho com o intuito de fazer prevalecer as raízes da banda e um “bom ambiente entre todos”, mas ao mesmo tempo com a intenção de melhorar a performance artística num conjunto que por norma se apresenta com sensivelmente 55 elementos.

“O objetivo é sempre proporcionar um bom concerto, um bom espetáculo, moderno e inovador com temas atuais, para que se possa perceber que as bandas são modernas e desmistificar um pouco aquela ideia das bandas de antigamente”, aponta com a batuta. Não tem dúvidas que o nível da banda tem vindo a ficar mais elevado, até pela crescente formação dos músicos. “Cada vez mais os músicos que estão na banda têm formação, enquanto que antigamente maioritariamente eram amadores com uma formação diferente. Facilita, mas ao mesmo tempo também complica e impõe maior rigor; é mais desafiante trabalhar desta forma, mesmo na escolha do reportório”, observa o maestro.

Mas, a mesma batuta que lidera a ambição de fazer mais e melhor é a mesma tem de se articular para aquele que é “o principal desafio” que Charles enfrenta enquanto maestro: “Manter os músicos num bom ambiente na banda”. É condição fundamental para que “se consigam enfrentar os desafios que há pela frente, pensando num reportório mais desafiante”, atenta o maestro.

“Espírito de família”, o segredo de uma boa banda

Nesta dicotomia, “cativar os mais novos” é também uma missão de extrema importância para garantir o “difícil rejuvenescimento” da banda. “Estamos conscientes que a associação tem 190 anos, foi-nos incutido isso, temos de incutir também nos mais novos, que são o futuro da banda. Mas, temos noção das dificuldades que isso acarreta, dada a oferta que a sociedade propõe nos dias de hoje”, atira Charles Piairo.

No decorrer do mês de dezembro Henrique Azevedo completa oito anos na liderança da associação. É presidente desde 2016, regozijando-se com o facto de a Banda das Taipas estar “num bom momento”, a superar a crise que estava instalada quando tomou posse. “Temos conseguido ter bons programas e marcar presença em boas festas”, reitera, apontando como um dos fatores do sucesso, talvez o principal, a ideia expressa pelo maestro: o bom ambiente instalado no seio da associação. “Quando assumimos a direção o que queríamos era unir. Criámos um espírito de família que é muito bom, serve de suporte”, destaca.

Um cenário que ganha maior ênfase quando se percebe o caminho que teve de ser traçado para que a Banda Musical de Caldas das Taipas pudesse recuperar o estatuto de outrora, conforme reconhece. “Dar um passo atrás para seguir em frente”, lembra, recordando que foi necessário “ir a várias festas ter prejuízo, fazer o caminho, para poder ser vista, recuperar nome e voltar à mó de cima”. Nos dias que correm o “cenário é bem melhor” e já é possível estabelecer valores e “escolher” as festas. “Este ano, no cômputo geral, já tivemos um saldo positivo naquilo que é a agenda de festas; temos vindo a aumentar de forma gradual”, vaticina.

Em marcha está a preparação do concerto de Natal, “têm sido um êxito”, opina Henrique Azevedo. O maestro Charles Piairo também se foca nesse momento, que “tem permitido criar bons espetáculos e as pessoas têm correspondido, com boas plateias”.  Pequenos focos de trabalho, num microciclo em que o foco é sempre um: “Manter o espírito de família”. “Tentamos promover bons momentos de convívios”, assegura o presidente da banda, escudado pelas vozes da experiência. “Pessoas antigas dizem que era isto que a banda deveria ter sido sempre, família e não guerras como foi”, termina.

Instalações: o problema que “foi e é” o “principal desafio”

Concertos, banda completa, academia em alta e dinamismo. A Banda Musical das Taipas atravessa um bom momento. O livro de João Ribeiro ajuda a perceber aquele que “foi e é” o principal calcanhar d’Aquiles. “O principal desafio são as instalações”, reconhece o presidente da Banda, Henrique Azevedo. Na sua pesquisa João Ribeiro conseguiu identificar “cinco ou seis locais onde, ao longo da sua história, a Banda das Taipas ensaiou”.

“A Banda ensinou muitas vezes em locais dos próprios músicos e o material era guardado em casas particulares; até numa barbearia chegaram a ensaiar”, uma ideia transmitida pelo autor do livro afeto aos 190 anos da instituição, que permite concluir que “o local de ensaio foi sempre problemático”. Continua a ser. Conhecido como “o barraco velho”, é apontado, mesmo que sem condições, o local onde podiam ensaiar “à larguinha”, junto do edifício que hoje serve de sede.

Está gizado um projeto habitacional junto à sede, que implica a demolição do edifício. “Por tradição e sentimento, as pessoas queriam sempre que a sede fosse no local atual”, vinca Henrique Azevedo, colocando em cima da mesa duas hipóteses. “O empreiteiro dá à banda uma sala de 200 metros quadrados – é a área que temos atualmente com o edifício de dois pisos – no fundo do prédio a construir. Mas, é ao comprido, numa configuração – com pilares no meio – que em nada serve os intentos da banda”, começa por explicar.

Por outro lado, pensa-se em reformular a antiga escola do Pinheiral, onde está a Academia de Música Fernando Matos, de forma a que possa albergar a vertente formativa, mas também a banda. “Já sugeri à Câmara Municipal de Guimarães que possa desenvolver um projeto na Academia, que comporte a Banda e Academia para cem crianças – atualmente temos 70, mas acreditamos que com condições melhores podemos crescer. Aproveitar o terreno e estrutura existente na Academia, ajustar e construir um edifício complementar de auditório num piso rebaixado e com salas que possam servir todos”, atira. 

Obra há muito reclamada, a Academia Fernando Matos foi alvo de obras de manutenção para debelar os problemas estruturais que possuía de infiltrações, de forma a poder seguir a sua atividade. “A Câmara apoiou-nos com verbas suficientes para colocar uma cobertura nova, a formação não pode parar e chovia muito lá dentro. Mesmo assim, precisa de melhoramentos, continua a ser muito frio e com pouco conforto”, atira o presidente da Banda das Taipas, Henrique Azevedo.