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A pandemia afastou as pessoas do folclore. E se elas não voltarem?

Pedro C. Esteves
Sociedade \ domingo, agosto 08, 2021
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Trajes e adornos engavetados, salões de ensaio despidos de movimento e música. Os ranchos folclóricos confinaram e há quem tema uma "catástrofe" para estes "museus itinerantes".

José Manuel Costa põe as coisas nestes termos: “É como se uma cantarinha dos namorados caísse ao chão e se partisse. Ainda não sabemos que bocadinhos vão dar para aproveitar”. O comentário surge ao fim de uma conversa sobre o que vai restar do movimento folclórico do concelho quando a “normalidade” se voltar a “impor”. É que há, neste momento, dezenas de salas de ensaio despidas de movimento; instrumentos sem uso; trajes e adornos dobrados e guardados em armários. O que neste momento preocupa vários grupos a norte do concelho é se os componentes os vão tirar de novo do guarda-fatos.

O presidente do Grupo Folclórico da Casa do Povo de Briteiros, José Manuel Costa, assinala que, desde o primeiro confinamento, de março até este mês, “os membros da direção encontraram-se de vez em quando para tomar alguma decisão, mas o contacto com as pessoas esvaziou-se por completo”. Cenário semelhante ao de outras coletividades a norte do concelho. O mesmo medo e inquietação: e se não der para aproveitar o que sobrou da cantarinha?

A apreensão espalha-se “de norte a sul”, garante José Manuel. Num dos grupos folclóricos mais antigos do concelho, em Souto, a sala de ensaios está agora convertida numa espécie de arrecadação: cadeiras empilhadas, mesas, barris, uma mesa de matraquilhos. O espaço aquecia todos os sábados com o “folclore violento” característico “dos grupos de Guimarães”. Vítor Macedo, presidente da assembleia, componente, dançadeiro e “um apaixonado pelo folclore” explica o termo “violento”: “É que nós vemos a maneira de dançar dos grupos de Coimbra, da Maia (aqui a poucos quilómetros) e reparamos que aqui é mais aguerrido”. Há o contacto, há o arfar, há algazarra e também há os fluídos, como o suor, sacudidos a cada movimento brusco. Características que tornam o folclore "impraticável" e que fazem com que palanques como o do Grupo Folclórico de Souto não recebam visitas dos componentes desde março de 2020.

A máscara não dá com este traje

A máscara não dá com este traje

Vítor Macedo e José Martins, presidente deste grupo formado em 1959, conversam com o Reflexo na sede de um coletivo que sempre foi sinónimo de proximidade e partilha. As estantes do pequeno escritório guardam memórias dos tempos em que Domingos Macedo cria o Grupo Popular dos Camponeses de Souto – “já com intenção de o transformar em Grupo Folclórico”, pontua Vítor. Para as paredes preenchidas com flâmulas de outras coletividades, de norte a sul, olha-se com saudade. Há, no entanto, esperança. “Para já não transparece desmotivação”, enquadra o dirigente. Dos 50 componentes, há jovens com vontade de regressar. “Não nos transparece nenhuma desmotivação por parte deles. A gente conversa, e alguns até dizem: ‘Nunca pensei que tivesse saudades de dançar em cima de um palco, quando voltarmos vamos fazer uma festa’”. No entanto, ainda há “receio” por parte de alguns membros. O Grupo, à imagem de outros, teve, ao longo do último ano, reuniões com a Federação de Folclore Português (FFP) e Associação de Folclore e Etnografia de Guimarães.

Nas trocas de ideias, uma sugestão: usar máscara. “Não tem raça”, dispara Vítor Macedo. “A expressão do dançador fica tapada e é uma peça que não encaixa no traje. Para não falar que ainda é mais cansativo. Não me via a dançar com uma máscara posta”. Sim, porque o presidente da assembleia ainda dança. 54 anos, 44 “sem parar de mexer as pernas”. Até que uma pandemia o obriga a guardar tudo. “Agora sinto saudades, é muito complicado. Saudades de tudo, porque um grupo folclórico, para alem do que faz, junta as pessoas para um convivo muito são. Temos saudades de nos encontrarmos, de partilhar em comunidade, essa é a nossa essência”, assinala.

Contar cabeças

A vontade de voltar também é sentida em Briteiros. No entanto, como em todas as conversas sobre o tema, também José Manuel avança com um “mas”. Com a da de toda a gente para casa, há uma dúvida que assola todos os dirigentes – até porque os grupos vão falando “amiúde” e partilham preocupações. “Os integrantes mais velhos pensam que é a hora de parar, os mais novos ganharam outras rotinas. Temo que o folclore vá sofrer uma razia de norte e sul. O concelho em si, que tem 20 e tal grupos folclóricos, temo que fique reduzido a metade”.

“Mesmo os que conseguirem sobreviver, vão ter que ensinar nova gente, vão ter que chamar novas pessoas. Entre chamar pessoas para dançar, vai ser moroso, aprenderem os passos, as danças, arranjar pessoal para a tocata – não há muita gente a tocar braguesa, cavaquinho, não são instrumentos muito procurados pela juventude. Há que ensinar gente mais nova. Depois de retomar, vai ser precisa uma fase de estágio. Não vai ser fácil”, vaticina. Do grupo com cerca de 50 pessoas, consegue contar “30 cabeças”. “Quando a gente começar a contar as espingardas, como no exército, depois de uma guerra, vão faltar muitas”.

Os jovens licenciados e uma “catástrofe”

A Associação de Folclore e Etnografia de Guimarães teme o mesmo cenário. “Em condições normais vai haver dificuldade humana. Vai ser muito complicado”, explica o presidente Carlos Oliveira. Esta associação é responsável por fazer a ponte entre os grupos e o município e promover ações de formação, organizar colóquios, palestras, conferências e seminários sobre temas de interesse do folclore regional, “bem como pugnar pela preservação e autenticidade do folclore do concelho”.

O dirigente acena com a possibilidade de muitos “jovens licenciados”, que figuravam em muitos grupos do concelho, zarparem. “E como estavam nos anos de adaptação, de aprendizagem, fazer esta paragem não foi nada benéfico”, resume. Mas o momento aflige porque o impacto pode sentir-se em todas as faixas estárias. Até porque o “folclore já exigia um sacrifício enorme”. “Quem quer estar no folclore tem que cumprir regras. O que é que acontece? Neste momento, o pessoal está a perder a rotina. Se os grupos não conseguirem fazer atividades para organizar novamente o grupo, eu sinto que alguns grupos vão ter muitas dificuldades”, frisa. Depois também há a questão geográfica: “Há grupos que têm membros de fora das freguesias, e aí pode acontecer uma catástrofe”.

O mesmo sentimento invade Rui Mendes. Em virtude da pandemia – e como aconteceu em vários grupos do concelho – viu o Festival Internacional (novamente) do Grupo Folclórico do Centro Social de Vila Nova de Sande cancelado. “Ainda não existem as condições necessárias à concretização do mesmo, sendo impossível efetuar uma grande festa do folclore, na sua plenitude, como habitualmente tem acontecido em edições anteriores”, referiu o grupo. Num comunicado extenso a propósito do cancela- mento do festival, a coletividade encapsulava os vários argumentos e sinais de alarme que têm soado: “A atividade desenvolvida pelos grupos folclóricos (...) envolve muitos voluntários apaixonados por todo o país, não é a única a ser prejudicada com a atual pandemia, mas é evidente a sua fragilidade, que poderá pôr em causa todo um importante legado identitário, com consequências drásticas possíveis no pós-pandemia, que a todos nos deve preocupar”.

O Facebook para juntar o que está longe

Em conversa com o Reflexo, Rui Mendes reitera: “ Receio que muitos grupos sintam essas dificuldades e é provável que alguns possam não voltar à atividade”. Em Vila Nova de Sande, há uma almofada: uma sede onde o grupo pode ensaiar sem precisar de pagar o aluguer pelo espaço, mas “há consciência que nem todos têm as mesmas condições”. Tem, no entanto, problemas que se aplicam a todo o folcore nacional. “A nossa atividade está bloqueada a 100%: os ensaios, o contacto, todas deslocações para festivais de folclore, toda aquela rotina a que estávamos habituados”, frisa.

À falta de atividade, de movimento, dos corpos transpirados que rodopiavam ao som da tocata, o grupo folclórico dedica-se, por agora, “aos registos de fotos e imagens, para enriquecer o espólio”. Já não há “envolvência” com todos os elementos desde março. Para mitigar os efeitos adversos da distância – tal como em outros pontos do concelho, há o medo de “novas rotinas, outras maneiras de ocupar os tempos livres” – as redes sociais têm sido vitais. “Temos feito um esforço para não perder a ligação, mantemos sempre o contacto. Sempre que há aniversários, fazemos questão de dar os parabéns, conversamos pelo Facebook para não quebrar a ligação. Por mais esforço que exista, há aquele receio por estarmos tanto tempo parados”, desabafa Rui. “Sentimos muito quando [o folclore] nos foi tirado e agora vamos sentir de outra forma. Vamos ter que nos voltar a adaptar à normalidade”

Um museu itinerante que representa um concelho

O dirigente queixa-se da “desvalorização” do setor pela tutela. “Fala-se muito das consequências na Cultura”, mas não no folclore,
argumenta. “O movimento folclórico nacional envolve milhares de pessoas, muitos apaixonados. É um trabalho de preservação, representação das próprias raízes, a identidade é muito importante e acaba por não ser valorizado”. Os apoios vão chegando sob a forma de subsídios atribuídos pelo município. Mas acaba por ser pouco para quem “representa um concelho por esse país fora”, reitera Vítor Macedo, presidente da Assembleia-Geral do Grupo Folclórico de Souto.

“A parte mais interessante que Guimarães tem é o folclore”, continua. “Divulgamos este concelho mais do que ninguém e toda a gente gosta de nos ver e ouvir. Levamos o nome do concelho a todo o lado. Divulgamos a cultura dos nossos antepassados, a maneira como as pessoas viviam e se divertiam. O folclore representa a vivência de um conjunto de pessoas, de uma geração, que perdura através do folclore. É um museu vivo, que se mexe, itinerante”, explica.

Uma das hipóteses sugeridas no seguimento de várias reuniões entre organismos e grupos passava por se fazerem fusões para aplacar
o impacto que a paragem pode infligir a alguns grupos. Ideia que não colhe em Souto. "Apaixonado por folclore", Vítor reitera que ele "não é todo igual". "Em cada grupo há muita identificação à terra, ao local. Quem faz recolhas de material, sabe que há uma disparidade enorme entre grupos de freguesias vizinhas", assinala. Há "bairrismo", sustenta, e matizes na forma de vestir, "até de cultivar".

Guarda-se com saudade os tempos em que, num autocarro, se saía de Souto rumo a outras paragens com o banquete para o triplo dos 50 elementos. Também aí se via, achega José Martins, presidente da coletividade, o espírito de partilha embebido no grupo. Resta sabe quando é que o museu reabre e pode voltar a calcorrear o país de norte a sul. Fazem falta novos galhardetes ao escritório e sapatos a bater nos estrados de madeira que serviam de palanque a noites e noites de ensaios.

Com Carolina Pereira